28/12/09

AINDA O NATAL... poucas coisas são o que parecem!

Eis uma grande lição. Aprendi há algum tempo que as aparências são pouco fiáveis mas por cá, esta máxima é quase uma regra de sobrevivência.
Para comprar um bolo dou por mim num cibercafé, rodeada de computadores e no balcão improvisado alguém nos mostra um pequeno catálogo de bolos de festa para fazermos a encomenda. Uma farmácia moderna, pode ser também um posto de venda de galinhas e o negócio acontece no minúsculo gabinete de óptica e em vez de sairmos de lá com um novo par de óculos, saímos com uma saca de frangos depenados ou a cacarejar, conforme a nossa preferência. E é assim com quase tudo, inclusive com o Natal.
No dia 24 de Dezembro não acontece nada, é um dia normal sem celebrações de qualquer espécie. O meu típico jantar de consoada este ano resumiu-se a pizza, cerveja e um bom filme, em casa, na companhia da Sharon e do Kayser (a empregada e o cão dos donos da casa).
No dia 25, acontece a grande celebração, bem diferente daquilo a que estamos habituados. Parecia S. João, com toda a gente na rua e festas por todo o lado, nos hotéis, piscinas e clubes. Grandes churrascos, borga, os miúdos com pinturas na cara, uma animação.
Ao jantar, as famílias juntam-se, o prato principal é galinha (uma iguaria que pode chegar a custar 5 euros nesta altura do ano), as prendas não são uma tradição e as compras resumem-se a roupa e sapatos novos, para quem pode.
A minha amiga Julie (se bem se lembram, a primeira amiga que fiz no Quénia e que foi minha colega nas aulas de Swahili) tinha-me convidado para celebrar o Natal com as freiras na comunidade dela aqui em Kisumu. Ainda cheguei a pensar em continuar em Diani e festejar por lá, mas sabia que elas contavam comigo e não queria decepcioná-las, por isso cheguei a 24 a Kisumu e dia 25 ao fim da tarde lá estava eu, no “convento” das School Sisters of Notre Dame, preparada para o Natal mais cristão da minha vida e a contar com um serão de rezas e rituais religiosos. ERRADO! (Felizmente, porque a perspectiva não era das melhores para mim).
Mal cheguei e entrei pela cozinha deparei-me com uma azáfama invulgar e uma excitação adorável. Havia música no ar, hip hop e Africana, e enquanto se ultimava o jantar dançava-se, ria-se e o ambiente era de festa e alegria. Vivem ali cerca de 20 mulheres religiosas e entre elas 12 são jovens de diferentes países africanos e de diferentes partes do Quénia que estão numa fase de preparação para a vida religiosa. São dois anos em que aprendem e experienciam a vida religiosa antes de decidirem se fazem os votos ou não.
Resultado: O jantar integrou iguarias de várias tribos do Quénia e de outros países de África pois todas queriam mostrar as suas tradições. Foi um festim de doces e salgados, vinho tinto, vinho branco (adoro o facto de os católicos gostarem de vinho!) e Baileys (a minha contribuição, a pedido das irmãs). Na sala de convívio uma árvore de Natal gigante rodeada de presentes (cada uma comprou presentes simbólicos para se trocar depois do jantar) e cheia de chocolates que as mais novas iam subtraindo de cada vez que passavam por lá. A seguir ao jantar, houve uma pequena celebração religiosa e pela primeira vez juntei-me a elas (viva o espírito de Natal!) e surpreendentemente gostei. A coisa integrou mais cânticos de Natal do que rezas (e elas cantam extraordinariamente bem) e foi bonito. Depois, foi a festa. Quando dei conta a sala estava cheia de djambés, chocalhos, pandeiretas e violas e a comunidade sentada em circulo, nos sofás e no chão à volta da árvore. Cantou-se muito. Mais tarde, retiramos uns números à sorte e distribuiram-se os presentes no meio de uma imensa alegria (para muitas das raparigas mais novas era a primeira vez que estavam a receber presentes) e muitas gargalhadas. A seguir mais música e dança. Afastaram-se os sofás e a sala transformou-se numa pista. Um grupo de raparigas nigerianas presenteou-nos com uma dança tradicional deliciosa e entraram na sala cheias de chocalhos nos tornozelos e à cintura, ao som de gritos de festa e tambores… maravilhoso!
Pela 1h da manhã, a minha amiga Julie, diz-me que bebeu um bocadinho de mais para pegar no carro e levar-me a casa e convida-me para dormir lá. Grande ideia, que eu também não me queria ir embora. E quando a maioria se foi deitar, ficou na sala um pequeno grupo divertido e acabamos a noite a partilhar a vida, a falar de coisas sérias a brincar, a contar o que nos ia na alma. Senti-me em casa, senti-me querida e mais uma vez confirmei que só estamos sozinhos se fecharmos o coração.
Foi um Natal memorável!

24/12/09

CHRISTMAS TIME












A viagem










Se não dermos demasiada importância ao facto de ser quase impossível dormir com a trepidação e o ruído do comboio, de nos cruzarmos com uma barata aqui e ali e de sermos acordados e chamados para o restaurante com alguém a bater em textos, a viagem na mítica linha do Uganda que, ligando o Quénia a este país, foi em tempos uma das mais importantes do leste de África, pode ser absolutamente encantadora.
Sete horas da tarde, Nairobi-Mombasa, 1ª classe. Basta entrar na estação para sentirmos uma certa nostalgia colonial e basta pôr o pé no comboio para começar a viajar mesmo antes de ele partir. Os compartimentos são confortáveis, o serviço cheio de mordomias, a carruagem restaurante é encantadora e por todo o lado nos saltam aos olhos pormenores deliciosos da estética e dos hábitos de outros tempos.
A paisagem, essa, fica-nos para sempre na memória desde o bairro de lata de Kibera e a zona industrial à saída de Nairobi, às montanhas, à savana, ao parque nacional de Tsavo e à vida selvagem que passa diante dos nossos olhos, sem esquecer as aldeias, os mercados e as crianças que dizem adeus e correm atrás do comboio ao longo de todo o percurso.

Diani Beach

E lá se foi mais um dos meus preconceitos: Diani é um dos locais mais turísticos da costa e estamos na época alta e eu, apesar de entusiasmada com a possibilidade de sol e mar, esperava uma coisa tipo Quarteira em Agosto. Estava tola! A costa é suficientemente grande e diversificada para acolher toda a gente sem necessidade de congestionamentos. E o local escolhido para a estadia era perfeito, um oásis dito para “backpackers”, onde por menos de 10 euros por dia se pode usufruir do melhor que os trópicos nos podem oferecer. É um local com alma, onde nos sentimos quase em estado de graça por lá termos ido parar e que nos vicia. Stilts-Tree top houses, é o nome do paraíso.
A água é do mar, dessalinizada, a energia é solar, a construção minimalista com materiais locais e quase imperceptível. Os macacos e os bush babies são as nossas companhias constantes, os pássaros a música de fundo e as borboletas, enormes e coloridas a dar cor ao verde completam um quadro fantástico que só é superado, do outro lado da rua pelos tons das flores, do céu e do mar.



E foi assim que aconteceu

Era para ser um fim de semana prolongada na companhia de 2 amigas e aconteceu tudo de forma tão estranha que a estadia delas encolheu, a minha esticou e eu já mal me lembro de ter partilhado estes, que foram os melhores dias do meu ano, com elas.
Mas vamos ao princípio. Quarta-feira à noite partimos eu e a amiga da minha amiga, que não era minha amiga ainda (a minha amiga ia ter connosco apenas na sexta à noite). Desde que nos conhecemos na entrada da estação que ela me pareceu adoentada, mas só ao jantar é que tive confirmação das minhas suspeitas. A moça vinha da Zambia (onde viveu uns meses a participar num projecto de investigação) e sentia-se doente há uns quinze dias, mas não achou importante ir ao médico antes de ir de férias. Aos vinte e dois anos fazem-se coisas um bocado estúpidas. Acontece aos melhores. Mas bolas, não estamos em casa, o ambiente é hostil à nossa mzunguisse delicada, cheio de vírus, bactérias e parasitas estranhos e o mínimo que se pode fazer é ir ao médico mal nos sentimos doentes. Comecei a ver a minha vida a andar para trás quando durante a noite a febre começou a subir, a diarreia a agudizar e as dores de cabeça a aumentar.
Resumindo uma longa história: mal chegamos ao Stilts para o nosso check in perguntei ao Andy, o dono, pelo melhor hospital das redondezas, levei lá a menina e mal ela foi vista pelo médico foi internada. Eu assegurei-me que ela estava em boas mãos, levei-lhe a mochila e fui para a praia.
E estranhamente fiquei disponível para uma das minhas mais extraordinárias experiências humanas. Fiquei sozinha, num local desconhecido, cheio de gente. Devo dizer que o bar do Stilts é uma espécie de ponto de encontro de almas gémeas do mundo inteiro, onde se geram empatias instantâneas, sintonias improváveis e onde se constroem afectos. Deve ser o local do mundo com mais viajantes por metro quadrado, com mais gente que largou tudo e partiu um dia, sem destino, com mais gente que mudou de vida de forma radical e com mais gente disponível para os outros. Eu demorei 5 minutos a ultrapassar o meu inconfortável momento de solidão e a solidariedade demonstrada para com a minha amiga no hospital foi enternecedora. A coisa é de tal maneira que mais de metade das pessoas no Stilts, ou Stiltoers como lhes chama a Heidi, estava lá indefinidamente. Chegamos todos para ficar 2 ou 3 noites e depois vamos criando afectos, laços e vamos adiando a partida. O Adrian, que anda a viajar, sem parar quase há 3 anos está lá há meses e ainda não sabe quando parte, está à espera de “sentir” que é a hora. A Heidi e a Cecília, duas norueguesas a fazer voluntariado em Mafia, perto de Zanzibar, estavam lá há quase duas semanas e iam ficar até ao Natal, o Nathan, um professor americano de escrita criativa, não consegue sair de lá, nem decidir para onde ir a seguir e pelo menos até à passagem de ano vai ficando, a Nayma, uma francesa de origem marroquina que viaja incessantemente desde o século passado, parando de vez em quando para ganhar algum dinheiro e voltar a partir, também adiou a viagem e fizemos juntas o regresso a Nairobi, o próprio Andy, o dono e mentor do lugar que calcorreou meio mundo decidiu criar aquele oásis para viver livre e como gosta, as 3 primas quenianas (uma a viver nos EUA, outra na Holanda e outra na Islândia) que se reuniram no Stilts para celebrar a vida e matar saudades e foram ficando até ao Natal… e mais… muito mais gente a ir e a vir e a partilhar e a dar.
E depois, aquela sensação constante de que nada é por acaso, de que as pessoas se atraem e se cruzam com propósitos misteriosos que às vezes só desvendamos mais tarde, depois de dizer adeus.
E depois estar em África, no meio do mato, partilharmos Ipods e descobrirmos que temos quase todos o mesmo tipo de música. Na primeira noite adormeci a ouvir Jeff Buckley e Nina Simone e parecia um sonho, a música a vir do bar e a chegar até mim misturada com os barulhos do mato nocturno e nos dias seguintes, dar por mim a beber gin tónicos ou a jantar chapatis e green grams (por 1,50 euros) ou a dançar ao som de Beirut, Morrissey ou Radiohead, com macacos empoleirados no tecto e osgas em alerta. O paraíso só pode ser assim. E gostar tanto de estar juntos, todos desconhecidos, que nem o maravilhoso “40 Thieves” na praia nos convencia a abandonar o ninho nas noites quentes e suaves de Diani.
Mas nem tudo é perfeito, ou talvez seja, que a vida é feita de contrastes. A praia está cheia de beach boys, verdadeiros predadores de mzungu. Uns querem vender artesanato, outros querem propor negócios de safaris, de snorkeling e mergulho, outros querem apenas “engatar” uma mzungu e não nos deixam em paz. Se não lhes dermos asas vão embora e se ultrapassarmos a antipatia natural de quem vê constantemente o seu espaço invadido até podem ser bem divertidos. Recordo em particular aquela manhã, com a maré a baixar e eu, a Rea e a Nayma numa plataforma flutuante a apanhar banhos de sol, a rolar para a água e a voltar ao sol vezes sem conta. Chega o beach boy à beira da água, em calções e encaminha-se na nossa direcção. O paleio do costume “How are you beautiful lady?”, “Do you enjoy the sun? And Quenia?”… a cartilha Zézé Camarinha. Fartas de o aturar, a Rea, diz “Olha só falo contigo se for para negociar um treeking aos Shimba Hills amanhã.” O moço não tem mais nada saca de telemóvel, manda vir o “chefe” e a criatura aparece passado uns minutos à beira da água a acenar. Nós a preguiçar ao Sol, nem pensar em sair dali… se ele quiser fazer negócio que se faça á água e venha ter connosco. E foi a coisa mais insólita do mundo, eles de telemóveis e catálogos de fotografias e listas de preços a entrar mar adentro. Foram dias de muito Sol, muito mar e muitas, mas muitas gargalhadas.
A amiga da minha amiga acabou por ter alta na sexta a noite mas antecipou a partida e foram as duas embora no domingo ao almoço. Eu tentei dividir-me e passar algum tempo com elas na praia e apresentá-las a toda aquela gente extraordinária, mas elas ficaram muito pouco tempo. Eu adiei a viagem o mais que pude e ontem quando saí de lá com a Nayma fui até Mombasa com o coração apertado e à beira das lágrimas. Provavelmente nunca mais nos vamos ver.


Regresso acidentado
Cheguei de Mombasa a meio da manhã e impunha-se arranjar um bilhete de autocarro para Kisumu no mesmo dia. Para meu espanto os bilhetes estavam todos esgotados. É época de Natal e está tudo a viajar. Depois de muito esforço lá arranjei bilhete para um autocarro às 22h. A meio da tarde estava eu pacientemente a ler na sala de espera da central de autocarros quando me apercebo que o céu ficara negro como breu. A chuva começou a cair impiedosamente e o vento parecia que ia deitar abaixo árvores, casas e o que mais lhe aparecesse pela frente, incluindo os vidros da estação. Na sala de espera, as janelas começaram a bater violentamente e lá fora os relâmpagos sucediam-se sem parar. Comecei a reparar no ar de pânico das pessoas. Um rapaz à minha frente encolhia-se todos e tapava o ouvidos e as pessoas estavam agitadas e tensas. De repente um relâmpago poderoso, um estrondo enorme e lá fora fios eléctricos a faiscar no ar como fogo preso no S. João. E é então que acontece. O pânico. A multidão ensandecida de medo. Poucas coisas me assustam mais que uma multidão descontrolada e à minha volta em segundos só se ouviam gritos. Homens, mulheres e crianças, com as mãos na cabeça, a gritar e a correr sem direcção de um lado para o outro da sala, encolhidos, levando pela frente cadeiras, malas, caixas de galinhas (que por essa altura também cacarejavam assustadas) e eu, na ultima fila, encostada à parede, com a mão direita direita sobre a mochila e a esquerda a segurar as pernas em cima do banco para impedir que alguém caísse por cima de mim. O cheiro a queimado invadia a sala e quando a trovoada acalmou as pessoas começaram a serenar, mas só para entrarem em pânico outra vez quando o disjuntor disparou e ficou tudo às escuras. Eu não tenho medo da trovoada, mas ontem à tarde o meu coração disparou e as minhas mãos tremiam com medo daquelas centenas de pessoas em pânico. (A ideia de enfrentar 7h de viagem nocturna com aquela tempestade também não era agradável. Mas correu tudo bem e estou de volta ao Nyanza).

10/12/09

NAS ENTRANHAS DE KISUMU

Ontem tive um dia, no mínimo atípico. Andei a visitar latrinas nos bairros de lata. Exacto, é mesmo isso que estão a pensar, andei a visitar retretes nas entranhas de Kisumu. Uns amigos recentes que por cá fiz estão envolvidos num projecto de promoção e construção de "eco-sanitation", ou seja, latrinas ecológicas e fizeram questão de mostrar tudo. A experiência foi tão real que chegamos a ter de esperar que um utilizador saísse da latrina para irmos espreitar o seu funcionamento. Foi deveras interessante, eu sempre a dizer "Nzuri sana. Twende! Taphadali", ou seja, em desespero a tentar sair dali "Muito bem. Vamos! Obrigado" para deixar o rapaz sossegado a aliviar-se e a avó dele, uma senhora grande e forte e com uma voz poderosa a mandá-lo sair da latrina que estava lá uma mzungu para espreitar aquela maravilha tecnológica. Foi um momento embaraçoso, pelo menos para mim, ver o moço sair de lá de dentro atarantado ainda a apertar as calças e ter a avó a puxar-me a mão para me enfiar lá dentro a ver o funcionamento da coisa: a separação da urina das fezes, os depósitos para ambas (nas latrinas ecológicas elas são transformadas em adubo), o tubo para saída dos gases (que as fezes produzem quando armazenadas), a qualidade dos materiais de construção. A senhora parecia uma engenheira a mostrar-me uma central nuclear! A juntar ao propósito insólito da minha visita, não podiam faltar as dezenas de crianças que corriam por todo o lado atrás de mim a gritar mzungu, mzungu how are you?, como se já não atraísse suficientemente a atenção haver alguém a meter o nariz nas retretes alheias. E se pensarmos que isto tudo se passou num dos maiores bairros de lata da cidade, sem qualquer tipo de saneamento, com as ruas e vielas transformadas em lamaçais, as casas coladas umas às outras numa manta de retalhos de materiais de construção, com o comércio e a indústria a transbordar para fora das casas (vendas de fruta, de chapatis, de carne, de peixe, de batatas fritas e de roupa, carpintarias, mecânicos, costureiras, construtores, chapeiros e sei lá que mais, todos a trabalhar à porta de casa no meio da lama) e eu, a mzungu mais famosa do bairro, a visitar latrinas, rodeada de dezenas de putos excitadíssimos com a minha presença, percebem a dimensão do meu embaraço. Mas acabou por correr tudo bem e depois de um belo banho purificador em casa, as coisas relativizaram-se: a experiência foi interessante, aprendi muito sobre latrinas, compostagem e adubos naturais, tive oportunidade de praticar o meu Swahili e ainda tive uma proposta de casamento, de um sujeito tão bêbado, mas tão bêbado, que andava atrás das crianças, que andavam atrás de mim (e não chegava até mim por questões óbvias de falta de equilíbrio) a gritar que queria casar comigo e a divertir toda a gente do bairro.

07/12/09

NYANZA


Mudei-me! Depois de 10 meses com sede em Nairobi e visitas aos 3 cantos do Quénia (o canto Norte infelizmente ainda está por explorar)instalei-me em Kisumu, onde vou ficar nos próximos meses a fazer o estudo de caso para a tese. Já cá tinha estado antes, já tinha escrito antes sobre o lugar e a região, já sabia que gostava da cidade e das gentes que por cá vivem e da proximidade do Lago Vitóri,a mas esta mudança tem-me dado que pensar. Logo na viagem para cá, mais de 7h de autocarro, comecei a esquecer as coisas que mais me incomodam neste país e que em Nairobi se me colam à pele como o fumo negro dos carros e me ofuscam a visão do todo. Depois de atravessar o Rift Valley, as encostas pintadas de verde bebé pelos arbustos de chá, os campos ondulantes de cana de açúcar, tudo iluminado por um Sol quente, brilhante e maravilhoso e chegar a Kisumu ao pôr-do-Sol, toda a negatividade que este país frequentemente me inspira tinha ficado para trás. E não é só a cidade, é a região toda do Nyanza (que significa "lago") que me encanta. Como é que explicamos o facto de nos sentirmos em casa num lugar e incomodados noutro? Não sei! Acho que é uma questão de química, como a atracção, ou o amor, se quisermos ser mais românticos. E depois há aquela conjugação de factores que faz com que a vida pareça cor-de-rosa: eu estou apaixonada pela região e ela parece que está apaixonada por mim e presenteia-me constantemente com surpresas maravilhosas, alimentando ainda mais a minha paixão. Quinze horas depois de chegar, uma amiga de uma amiga ofereceu-me a sua casa durante um mês, a vizinha da amiga da amiga, ofereceu-me a casa dela durante a primeira quinzena de Janeiro, o amigo do amigo de outra amiga levou-me a lugares fantásticos da cidade e depois a uma festa africana maravilhosa, que durou pela noite dentro, a dona da casa da festa aluga-me um quarto fantástico quando eu quiser, vários amigos da dona da casa que conheci na festa partilharam contactos, preocupam-se comigo, oferecem alegria, orientação e companhia e já temos aniversários, passeios madrugadores para ver pássaros, excursões no Nyanza e visitas a projectos sociais agendadas, os condutores de Tuk Tuk em vez de me explorarem fazem-me descontos por ser portuguesa, por ser simpática, por ter um nome bonito e até (disse-me um deles) por achar que eu lhe ia trazer muita sorte para o resto do dia de trabalho, na rua as pessoas falam comigo, são simpáticas, nos matatus há sempre conversa com uma ou várias pessoas, com muito sentido de humor e riso à mistura, as pessoas da organização com quem vou trabalhar abriram-me o coração, deram-me o seu tempo e deixam-me vasculhar todos os arquivos que possam imaginar e ficaram tão contentes por eu ter voltado para trabalhar com eles, como prometido, que me emocionou. E amanhã faço anos e tenho duas festas e depois é Natal e nem sei o que escolher.... e isto depois de passar 10 meses em Nairobi a sentir-me sozinha, inadaptada e cheia de saudades de casa. Digam lá se isto não é paixão!? O Nyanza apaixonado por mim e eu por ele. Por cá ficava mais 10 meses sem problema nenhum, a viver a paixão. E não pensem que são tudo rosas, que também não há coisas que me incomodam e assustam por cá, afinal foi aqui que aconteceu o pico de violência durante as últimas eleições. Foi aqui que assassinaram mais pessoas, que destruíram mais imóveis (o que é ainda bem visível) e onde a loucura e insanidade colectiva atingiu o auge. Eu não imagino como tal foi possível. Como é que esta gente boa e generosa, neste lugar encantador, chegou a tais extremos de desumanidade... mas dizem que o amor é cego.

26/11/09

MUDAR O MUNDO

Há muito, muito tempo, quando me projectava no futuro imaginava-me sempre no papel de salvadora do mundo. Mesmo quando o meu maior sonho era ser astronauta, o objectivo era sempre ter um impacto que ficasse na história. Tinha um bocado a mania das grandezas, é verdade. Depois, comecei a descer à Terra, a ganhar consciência social e continuava a querer salvar o mundo a trabalhar em campos de refugiados ou nos lugares mais inóspitos onde as pessoas morriam de fome. Eram os anos 80 e pela primeira vez as imagens de fome na Etiópia, a guerra do Biafra, o espectáculo humanitário do Live Aid ,entravam-nos pela casa dentro. Mas nessa altura a indústria do desenvolvimento ainda era uma criança e as minhas primeiras tentativas de sair para salvar o mundo foram frustradas.
Rapidamente comecei a perceber que não havia fome só em África. Lá no burgo, apesar de estarmos a ser invadidos de dinheiro dos fundos estruturais e a modernizar as nossas infra-estruturas, as nossas instituições e a nossa economia também havia quem passasse fome, quem não tivesse onde viver, quem não pudesse ir à escola.
Muitas voltas da vida depois, acabei por ir parar a África e por centrar o meu trabalho no continente. Mas já não tenho a mania das grandezas nem acredito no meu poder para salvar o mundo inteiro (nem sei se é suposto ter salvação). Hoje em dia, perguntam-me muitas vezes o que é preciso fazer para vir trabalhar para África. E eu pergunto sempre “Mas o que queres vir para cá fazer?”. Na grande maioria das vezes a resposta é sempre igual “Quero ajudar os pobres, as criancinhas, os que morrem de fome”. Eu respiro fundo (reconheço à distância aquela mania das grandezas de salvador do mundo) e normalmente digo “Se é por isso que queres vir, não precisas, podes fazer o mesmo em qualquer lado. Basta abrir os olhos para ver que na nossa “casa” também há pobreza, desigualdades e injustiças”. Eu sei que na maioria das vezes devo dizer isto até com alguma frieza e cai mal a quem sonha ser super-homem ou super-mulher com a melhor das intenções. O problema é que de boas intenções e gente cheia de super poderes ao serviço dos fracos e oprimidos, mas que só os querem usar em lugares exóticos e desconhecidos, está o mundo cheio.
E devem, por esta altura estar a perguntar “Mas então o que é que ela está lá a fazer?”, o que é mais que legítimo. É fácil, eu estou aqui por mim e não pelos outros. Estou nesta parte do mundo porque quero aprender mais sobre culturas que me fascinam, sobre sociedades que não entendo e, sobretudo, porque quero aprender mais sobre mim própria e crescer como pessoa. E eu sei que o facto de me expor a situações extremas, duras, ou nem por isso à vezes, mas o exercício da flexibilidade e da adaptabilidade permite-me confrontar-me comigo própria e descobrir-me. Não estou cá para ajudar ninguém, não mais do que ajudaria em qualquer outro lugar, porque a diferença acredito que a fazemos com as pessoas que nos rodeiam todos os dias.
Recentemente vivi um momento lindo, que me fez pensar nestas coisas. Fiz um pequeno curso de psicologia e aconselhamento infantil que me deu imenso prazer e que me ensinou a recorrer aos jogos e às brincadeiras para comunicar com crianças que sofrem de traumas. Pouco depois, num dia em que estava a fazer voluntariado no orfanato em Ruiru aproximei-me de uma menina que anda sempre muito caladinha mas que se agarra às nossas pernas e braços como se fosse uma questão de vida ou morte. Peguei num papel e lápis de cera de todas as cores e sentamo-nos no chão. Pedi-lhe para desenhar qualquer coisa e ela assim o fez. Pedi-lhe para explicar o que tinha desenhado e de repente vi abrir-se a porta para o coraçãozinho dela. Através do simbolismo dos desenhos com que ia enchendo a folha de papel falou-me dos medos, dos sonhos, da vida.
Claro que nada disto substitui uma terapia especializada com alguém devidamente qualificado, que infelizmente não temos e de que muitos miúdos precisam. Mas naquele momento fez a diferença, abriu uma porta, criou uma ponte para o mundo de outra pessoa. Uma ponte que permite ajudar a mudar esse mundo, a construir segurança e confiança onde só há medos, a levar explicações onde só há perguntas e confusão, a plantar afecto onde só há ressentimento e abandono. E visto assim, apesar de estar a falar apenas de uma menina de 8 anos, uma única pessoa no meio dos biliões de pessoas do mundo, parece-me muito, parece-me importante e sinto que estou mesmo a mudar o mundo; pelo menos o meu e o dela.

23/11/09

ESPIRITO DE NATAL

Comecei recentemente a reparar que as grandes cadeias de supermercados, os Continentes do Quénia, têm "ilhas" de cestas plásticas vermelhas e brancas, mas nunca percebi bem o que era. Finalmente explicaram-me, são os "cabazes de Natal" pré-fabricados para os patrões darem aos empregados de casa. Dentro das cestas estão uns quilos de farinha para fazerem a papa de milho, óleo e outro tipo de farinha para as chapatis (uma espécie de crepes que substitui o pão). Cada cesta custa a módica quantia de 12 euros. Nada de mais para um presente de Natal a quem lhes cuida da casa, dos filhos, do cão e lhes atura os dias bons e maus e, muita falta de educação. O que é curioso é que estas pessoas ganham por mês pouco mais do que o valor da cesta, muitos deles apenas 20 ou 30 euros e com isso sustentam famílias. Se em vez da pirosa e poluidora cesta plástica lhes dessem pelo menos o valor dela em dinheiro, eles apreciariam muito mais, comprariam muito mais coisas do que a cesta contém e pelo menos poderiam escolher em que gastariam aquele dinheiro que lhes faz tanta falta.
Quando vi isto, pensei nas cores do Natal. Os italianos de Breccia (alguns) querem um "White Christmas", sem imigrantes de outras cores e aqui no Quénia temos cestas natalícias para celebrar o "Black Christmas" que é a cor dos pobres.
E assim vai o espírito de Natal num mundo a preto e branco.

22/11/09

O QUÉNIA NO SEU MELHOR

Um destes dias cheguei a casa feita num oito, como se diz na minha terra :). Tinha andado um bom bocado a pé e cheguei a casa cheia de dores na perna e na coluna e atirei-me para o sofá a ver se a coisa passava. Nisto chega a Lucy para a sessão de limpeza e mal eu lhe digo porque estou tão quietinha, ela não tem meias medidas: saca um frasquinho da carteira, levanta-me a saia e massaja-me violentamente a perna, isto sem eu ter tempo, nem para dizer “Ai!”. Muito rapidamente põe-me ao corrente dos efeitos milagrosos do líquido no frasquinho. “Isto é tiro e queda, cura tudo” e a seguir vieram dois ou três exemplos de mazelas desaparecidas em familiares e amigos próximos, tudo, graças ao miraculoso produto (cá para nós, com uma inquietante cor amarela!).
Peço-lhe então para ver o frasquinho e leio o micro rótulo a ver se descobria o princípio activo da coisa. Basicamente o que dizia, em vez da composição era o seguinte “Este medicamento é milagroso e actua através do Espírito Santo. Caso não fique curado é porque não tem fé suficiente.”
Claro está, que a coisa só passou com uma bela dose de anti-inflamatórios, uns medicamentos muito mais democráticos, que tanto curam crentes como descrentes.


Fiz um curso prático de Psicologia e Aconselhamento infantil, muito interessante mas sofri um choque cultural violento logo na primeira sessão. Pouco depois das apresentações, pediram-nos para fazer uma lista de “Regras da sala de aula” (lembro que éramos todos adultos, formados e profissionais). A Lista de regras era infindável e, por vezes, contraditória. Não se podia interromper a aula, mas devíamos participar activamente, devíamos limitar os nossos movimentos (não sei mt bem a quê), tivemos de eleger uma espécie de delegado de turma e tínhamos de nos respeitar uns aos outros. No entanto, no momento seguinte dei por mim a assistir a uma discussão acesa sobre quantas vezes por dia deveríamos rezar durante a formação. Disse bem, não era se devíamos rezar, mas quantas vezes e a grande maioria inclinava-se para o número 5 (à chegada, antes de cada intervalo, ao almoço e à saída). Eu acho que fiquei um bom tempo paralisada a tentar perceber o que se passava até que não aguentei mais e apelei ao meu direito de não rezar ao senhor vez nenhuma. “Vocês rezem as vezes que quiserem, mas não esperem que toda a gente partilhe o mesmo sistema de crenças. Eu não rezo e quando vocês rezarem eu vou lá fora tomar um cafezinho”. Surpreendentemente, a única pessoa não africana que lá estava, uma rapariga argentina, apressou-se a dizer que me fazia companhia.

Hoje vinha do Centro de Rebilitação e uma colega de lá passou num centro comercial e parou para perguntar a que horas fechava ao domingo. Quando lhe perguntei que lugar era aquele, disse-me que era o centro comercial das Nações Unidas. Ou seja, os funcionários para além de receberem principescamente e terem regalias sociais do outro mundo, imunidade diplomática e uma polícia só para eles, também têm uma espécie de department store só deles totalmente tax free.

16/11/09

O QUÉNIA DE 5 EM 5

5 DESCOBERTAS BOAS
1 - A Aljazeera, um dos melhores canais de informação que conheço
2 - O sumo de tree tomato... divinal!
3 - Meditação... fiz um curso, comecei a praticar e fiquei agarrada
4 - Os safaris e a vida selvagem (a0 vivo é muito mais interessante que no NG)
5 - O Talismã, o meu restaurante preferido no mundo inteiro


5 DESCOBERTAS ESPANTOSAS
1 - A poderosa indústria filipina de telenovelas dramáticas onde nunca faltam ceguinhos, gémeos, bastardos mal amados e maus como as cobras, sogras do demo e heroínas românticas burras todos os dias.
2 - A poderosa indústria cinematográfica da Nigéria - Nollywood - um mundo!
3 - A comunidade Somáli e a Somália sobre as quais poucas referências tinha e que passaram a fazer parte da minha vida.
4 - O inglês do Quénia. É um facto que jamais vou entender correctamente o que as pessoas dizem.
5 - O preço das massagens e dos produtos de spa (um luxo acessível devido aos ordenados miseráveis)

5 DESCOBERTAS TRISTES
1 - A dimensão brutal da divisão social (de origem étnica, de género, económica etc)
2 - O fosso económico sem fundo entre miseráveis, pobres, ricos, muito ricos e escandalosamente ricos
3 - A corrupção paralizante e presente em todas as dimensões da vida
4 - O Norte árido, pobre e esquecido (e onde habitam algumas das tribos mais extraordinárias do continente)
5 - O fanatismo religioso e o obscurantismo alimentado por quase todas as religiões

Corrupção, batota ou apenas outsourcing num mercado competitivo?

Um artigo de opinião delicioso. Ora espreitem :)


http://www.nation.co.ke/oped/Opinion/-/440808/685850/-/4pn4d9/-/index.html

05/11/09

QUE GÉNERO DE IGUALDADE QUEREMOS CONSTRUIR?

O casamento entre dois homens de origem queniana, que teve lugar recentemente no Reino Unido, deu origem no Quénia a expressões de homofobia próximas do delírio colectivo mas abriu o debate, ainda que muitas vezes insano, sobre um dos maiores tabus deste e de muitos países africanos. E quando a maioria, incomodada simplesmente por ter de falar no assunto, preferia que os homossexuais simplesmente não pudessem existir, eu questiono-me até que ponto não estamos nós todos, ainda que através do silêncio e da negligência, a participar neste jogo perigoso contra os direitos individuais, quando criamos, por exemplo, Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, que defendem a igualdade de género apenas numa perspectiva heterossexual moralista.

Um dos argumentos mais utilizados e quanto a mim dos mais absurdos e desinformados, é o de a homossexualidade não existir em África e de a sua defesa ser uma forma de imperialismo ocidental. Ora o imperialismo tem as costas larguíssimas por aqui e a sua definição é bastante selectiva. Também é considerado imperialista, por muitos, a defesa dos direitos das mulheres ou a insistência da comunidade internacional na necessidade de acabar com a corrupção, ou até os direitos laborais. Claro que já não é de todo imperialista a dinâmica cada vez maior de destruição ambiental ou os padrões de consumo. A referência ao imperialismo serve sobretudo para accionar o sentimento de culpa ocidental quando se tenta promover direitos e liberdades, como se as culturas fossem estanques, fechadas ao mundo e às influências exteriores e como se fosse possível cristalizá-las. Ou seja, como se fosse possível ter telemóveis de última geração e internet e dar a volta ao mundo em algumas horas, mas continuar a viver de acordo com a sociedade do tempo de Jesus ou Maomé, sociedade esta, ainda por cima, interpretada ao bel prazer de cada um, de cada pastor, de cada padre, de cada líder muçulmano.

No Quénia, a respeito desta questão, a única coisa verdadeiramente imperialista, é a lei que criminaliza a homossexualidade, que foi introduzida no início do sec. XX pelo governo colonial britânico, baseada numa lei inglesa de 1533, que tornou o crime punido com pena de morte até 1861, altura em que foi reduzida para prisão entre 10 anos a perpétua. Em Inglaterra a homossexualidade foi descriminalizada em 1967 pelo “Sexual Offences Act”, mas mantém-se no Quénia onde esta herança do imperialismo britânico justifica, agora, um puritanismo africanista que não é mais que o resultado deste cocktail onde a uma lei caduca dos ingleses, se junta o fundamentalismo religioso (de todas religiões), o obscurantismo e o desrespeito pelo indivíduo.

O artigo de opinião de Okiya Omtatah Okoiti, com o título “Unlike Christianity and Islam, homosexuality is unAfrican”, publicado no Daily Nation resume na perfeição o tipo de posições que se esgrimiram a propósito deste assunto. Mas outros argumentos competem para a insanidade da discussão a que por cá se assiste, entre os quais, a ligação constante da homossexualidade à pedofilia com várias pessoas a afirmarem que se se aceitar um comportamento estamos a um passo de aceitar o outro. Esquecem-se, estes malabaristas da retórica, que num caso estamos a falar do comportamento sexual consentido entre dois adultos e noutro de abuso sexual de menores. Se pensarmos que esta semana foi notícia de primeira página um relatório que denuncia o abuso sexual continuado de milhares de raparigas quenianas, nas escolas, pelos próprios professores, homens supostamente heterossexuais, e que o impacto da notícia foi muito menor do que a do casamento destes dois cidadãos quenianos, algo vai muito mal. Não entendo!

Felizmente, muitas foram também as vozes que se ergueram para refutar estes argumentos violentos e defender a privacidade do casal em causa, apesar do risco, sempre presente, de serem eles próprios acusados de serem homossexuais (caso contrário não os defenderiam, no pensamento de muitos). Recordo em particular uma observação de uma das principais cronistas da imprensa queniana, uma mulher sem papas na língua, que afirmava a propósito, que o maior problema dos quenianos era preocuparem-se em demasia com o que se passa em cama alheia. Eu não podia concordar mais!

Mas a bem da discussão, independentemente dos argumentos, o melhor de tudo foi ter-se criado espaço para falar em público de tão grande tabu. Os jornais foram invadidos literalmente por e-mails e cartas veementes, contra e a favor, a questionar e a informar… enfim, a opinar sobre a homossexualidade.

Mas a defesa da homossexualidade é uma falsa questão. Não é a homossexualidade ou a heterossexualidade que deve ser defendida, mas os indivíduos que, independentemente das suas orientações sexuais, papéis sociais ou de género devem ter acesso aos mesmos direitos de cidadania e ao respeito. E é por isto mesmo que as políticas de desenvolvimento e nomeadamente os ODM, ao centrarem-se exclusivamente na promoção da igualdade de género, estão a ser insuficientes e a pactuar com uma visão redutora da sexualidade humana assente na heterossexualidade e na dicotomia do masculino e feminino. Nem sequer vou argumentar recorrendo a Foucault ou outros pensadores contemporâneos sobre a construção social do próprio sexo, que tem muito que se lhe diga, como resposta à recorrente visão funcionalista da sexualidade e sobre o que é “natural” ou não é “natural”.

Quero apenas deixar aqui um alerta preocupado, para a necessidade de se ir mais longe e com mais empenho na defesa dos direitos dos indivíduos que é tão frágil em tantos lugares do mundo. Apesar de compreender, de certa forma, a limitação dos ODM no que respeita à defesa exclusiva da igualdade de género, como forma de centrar todos os esforços e recursos nessa batalha árdua, não posso deixar de achar a estratégia perigosa e reflexo de um certo moralismo ocidental, onde apesar do muito já alcançado em termos da garantia de direitos individuais, se continua a advogar a heterossexualidade como modelo de comportamento sexual “correcto“. Acredito sinceramente que seria muito mais produtivo e justo defender a igualdade entre todos os indivíduos, independentemente da sua cor, etnia, género, orientação sexual, classe social ou religião. Seria mais difícil, é certo, pois não há sociedades perfeitas onde todos vemos expressas as nossas convicções e valores, mas promoveria o respeito pelas diferenças e o diálogo.

04/11/09

NOTÍCIA DO DIA

Não é uma notícia em destaque nos media quenianos, mas é a notícia do dia para mim, que ainda estou a digerir o conteúdo.
Na Somália, os "Rebeldes" fundamentalistas, ligados aos talibã da al-Qaeda, proibiram a utilização de toques de telemóvel com música, isto depois de recentemente terem proibido a dança, a música e o cinema, incluindo nos casamentos. Por lá os telemóveis só podem tocar pregações e canticos religiosos. Na passada semana um desgraçado mais herege levou com 25 chicotadas em público por ter sido apanhado a ver vídeos musicais indianos no telemóvel. Dizem os senhores da Lei que estas medidas são fundamentais para eliminar todas as fontes de corrupção das pessoas.
O que eu me tenho lembrado do Ahmed, que tem um Ipod recheado de boa música e que segundo ele é o único conforto que lhe resta quando está lá em reportagem.
Só me apetece chorar, não sei bem se de riso se de tristeza... talvez das duas coisas.

01/11/09

FINALMENTE OS JACARANDAS FLORIRAM

Creio que no primeiro post que escrevi nesse blogue depois de chegar a Nairobi disse, que jamais iria embora sem ver os jacarandas em flor e ao fim de tanto tempo por cá, já começava a questionar-me se alguma vez veria as maravilhosas florzinhas azuis.
O desacerto da estação das chuvas que tardou e terminou demasiado depressa parece que teve alguma coisa a ver com o atraso deste encantamento, mas depois de estar fora mais de um mês, regressar e ver a cidade pintada de azul emocionou-me. Eu gosto de árvores, e por cá, por estas latitudes, tenho uma admiração tremenda pelos embondeiros, imensos e peculiares e um carinho especial pelas acácias que me dão sempre a sensação de estarem de braços abertos ao Sol, mas os jacarandas são as que mais me encantam, principalmente quando explodem de cor. É uma arvorezinha de aspecto frágil e delicado mas que quando floresce parece etérea e transforma-se numa espécie de nuvem azul que ofusca tudo à sua volta. Aqui ofusca a poluição, o caos urbano, o pó e põe-me a olhar para o céu.
Não podia ter recebido melhor presente de boas-vindas!
E com os jacarandas em flor parece que veio também a chuva persistente para acabar com a seca, ou pelo menos para aliviar o sofrimento dos milhões de pessoas mais afectadas pela falta de água. E se bem que a fome não acaba de um dia para o outro, a esperança trazida pelas chuvas, que segundo as previsões vão ser estáveis até Janeiro, já levou muitos agricultores a voltar a lançar sementes à terra, à espera do milagre da vida e da renovação.
Vou ver se por estes dias me aventuro num safari fotográfico, pela cidade pintada de azul, para poder mostrar-vos aquilo que com as palavras não consigo descrever.

29/09/09

A PERGUNTADORA NA TERRA DOS FIORDES

Um interregno na experiência africana pode fazer maravilhas, sobretudo se formos para os antípodas do contexto em que vivemos. Ajuda a colocar as coisas em perspectiva e a aliviar a tensão originada pelo estado permanente de choque cultural. Uma conferência em Trondheim, na Noruega. Uma oportunidade para partilhar e discutir os dados da investigação recolhidos até agora Uns dias livres para conhecer um pouquinho a terra dos fiordes. Um artigo para terminar longe do terreno, com outro olhar sobre a realidade. Imensos estereótipos sobre o Norte destruídos a cada minuto que passa. Um cenário natural tão avassalador que nem apetece tirar fotografias porque o produto final é mentira, é menos bonito que o original. Um friozinho de arrepiar que sabe bem como variação ao calor. Um país pintado de cores de Outono para fugir à “monotonia” do verde luxuriante ou do pó e da terra vermelha. Um país de fiordes, rios e lagos para compensar as saudades da água de quem vive em Nairobi. Ar puro e águas cristalinas. A Perguntadora a descobrir coisas novas, feliz e com tempo e condições para processar informações armazenadas.

A conclusão tranquilizadora de que mudar e experimentar coisas novas ajuda a resolver quase tudo.

E a certeza de que o mundo é um lugar plural e diverso e que aí reside toda a sua beleza e encanto.

23/09/09

MASAI MARA







É o parque natural mais famoso do Quénia e um nome que nos transporta imediatamente para a África dos safaris (no verdadeiro sentido da palavra, uma vez que safari significa viagem em Swahili) e da vida selvagem.

Já lá fui duas vezes. A primeira experiência foi má. Não gostei. A segunda foi uma surpresa, um incidente que colocou o Mara no meu mapa dos afectos para sempre.

Como quase tudo na vida, o resultado final depende de nós, do nosso estado de espírito, da nossa abertura a desafios, da forma como lidamos com a vida... no entanto, quando se trata de um safari em Masai Mara as coisas também dependem um bocadinho de quem nos está a mostrar o parque. Uma pessoa pode ter a maior tolerância do mundo e a maior abertura possível aos desafios mas se der de caras com um tipo como o Cobra (o primeiro guia que me levou ao Mara), funcionário de uma empresa turística de vigaristas que nos cobra muito mais dinheiro do que o inicialmente acordado, senhor de uma enorme falta de educação, profissionalismo e ainda por cima arrogante, não há grande saída. Se juntarmos a tudo isto o facto de ele desconhecer o parque, temos garantido o pior safari de sempre, uma enorme desilusão e dias de tensão garantida. Eu, que sou uma rapariga calminha e ponderada tive vontade de lhe arrancar os olhos várias vezes!

Para mim é um facto que o parque está sobrevalorizado na bolsa turística, é o paradigma do safari de massas, é inexplicavelmente caro e alguns acessos são tão maus que podem estragar o espírito para a viagem antes de lá se chegar. Sobretudo a estrada de Narok, a mais usada, que liga Nairobi ao parque, representa horas e horas de buracos, pó, mais pó e mais buracos e uma viagem penosa e desmotivadora. Isto num país que, para os padrões africanos, até tem estradas decentes e naquele que é o itinerário mais usado pelo turismo, a indústria mais importante do país. Não se percebe muito bem!

Mas adiante... vamos aos aspectos mágicos e inesquecíveis e a algumas dicas para evitar os piores.

O parque de Masai Mara, no sudoeste do Quénia está ligado ao Serengeti, na Tanzania. Basicamente trata-se de dois nomes diferentes para designar uma mesma coisa, que por acaso (ou nem por isso) tem uma fronteira pelo meio e administrações diferentes e nacionalidades diferentes. Ora, nós sabemos isso, a fronteira está lá para toda a gente ver no meio da savana, mas os animais selvagens não sabem e não havendo forma de lhes ensinar coisas tão importantes como o patriotismo, o respeito pelas leis fronteiriças ou o ódio reciproco por terem pertenças territoriais diferentes, eles passeiam-se de um lado para o outro, como sempre fizeram, ignorando as fronteiras dos homens e seguindo apenas os seus instintos de sobrevivência. Esta indisciplina animal dá origem ao mais extraordinário espectáculo do parque: a grande migração, quando milhões de animais circulam entre o Serengeti e o Masai Mara, em busca de água, de alimentos, para acasalar ou para parir.

É fascinante a quantidade de animais que se podem facilmente ver de um lado para o outro durante um pequeno passeio no parque. Então se tivermos um bom guia, que conheça o parque e saiba em que zonas estão as diferentes espécies, o espectáculo é garantido.

A minha segunda visita ao Mara foi inesperada. Um belo jantar em Kisumu, junto ao lago Vitória, uns amigos em férias a conhecer o Quénia, a vontade de ir ao Mara, uma pergunta inocente ao gerente do resort “Vocês organizam safaris?”, um telefonema a um amigo dele que aluga viaturas e quando damos conta tínhamos marcado uma visita de doidos ao Masai Mara, por um preço inacreditável para dois dias depois.

Saída às 5 da manhã, 5h de viagem, por Kisii e através de vales e montanhas verdes. Uma boa estrada que se transforma em picada (e em ringue de lutas na lama se chover, como pudemos verificar no regresso!) nos últimos quilómetros. Chegamos ao Mara a meio da manhã e ficamos sem fôlego quando avistamos a imensidão da savana do topo de uma montanha depois de atravessar uma das regiões mais verdes do país. Lembro que a savana fica a 2000m de altitude e que portanto, nós estávamos bem mais altos. Não há fotografias que façam justiça ao impacto desta paisagem. O horizonte a perder de vista, a savana pintada de mil tons de ocre e amarelo pontuada por pequeninas manchas escuras, que são as acácias, o silêncio imponente, o céu sem fim e aquela sensação de pequenez que nos faz tanta falta, que não quer dizer que somos insignificantes, mas apenas que somos parte integrante de algo bem maior. É maravilhoso!

Chegados à entrada do parque e depois de desembolsar $60 cada estrangeiro e 1000Ksh (cerca de 10 euros) cada residente, que foi o meu caso (apesar de não ser verdade) porque um dos guardas não me queria fazer desconto de estudante e o outro simpatizou comigo e acabou por fazer ainda mais, o desconto de residente, achamos por bem contratar os serviços de um ranger do parque para nos guiar. É a melhor solução e a mais barata. Alugar um carro todo o terreno com motorista e depois no parque os serviços de um ranger, (a partir de 15 euros) que conhece o território e os animais como ninguém.

Depois é um desfilar interminável de espécies, paisagens, emoções e Masai Mara conquista-nos para sempre. E se juntarmos à experiência uma visita a uma aldeia Masai, um dos povos mais emblemáticos do Quénia, nativos da região, que vivem em harmonia com a savana e que andam a ser empurrados de um lado para o outro, em reservas inventadas desde que Masai Mara passou a servir o turismo, temos a cereja em cima do bolo e a garantia de uma experiência absolutamente inesquecível. Claro que como tudo no Quénia, tem um preço. É preciso negociar a entrada com o chefe da aldeia. A mim parece-me mais que justo! Afinal os Masai, que são o povo da savana, são os que menos ganham com a indústria turística e os que mais sofrem por causa dela.

07/09/09

DEFLORESTAÇÃO, SECA E FOME

No Quénia, para muitos o país dos safaris e do grande espectáculo da vida selvagem, a destruição da floresta Mau, ao longo dos últimos vinte anos, tem uma influência directa na diminuição da precipitação, na retenção de água e na alimentação de alguns dos mais importantes lagos e rios da região. A seca que atinge todo o país e a fome que afecta já cerca de 10 milhões de pessoas no Norte são a face mais visível e dramática de um ciclo complexo de irresponsabilidade política e corrupção cujas consequências ameaçam afectar profundamente a estabilidade económica e social, a segurança alimentar e a própria vida selvagem, que tem sido a imagem de marca do país.

Todos nós sentimos de alguma forma os efeitos das alterações climáticas e a discussão das soluções e consequências deste problemas entram-nos todos os dias pela porta adentro através da comunicação social. Sabemos que as estações do ano já não são o que eram, que as catástrofes naturais parecem ser cada vez mais frequentes, que em muitos lugares a água escasseia. No entanto, em muitos países, estas consequências ainda não afectam directamente a maioria da população e as alteração climáticas continuam de alguma forma num patamar abstracto pois continuamos a ter água nas torneiras, electricidade nas tomadas e comida no prato. Infelizmente, o mesmo não se passa em todo o mundo e em muitos lugares a seca, a fome e os conflitos armados são consequências directas da destruição ambiental e das alterações climáticas. O Quénia é, actualmente, um bom exemplo desta cadeia de situações extremas e um testemunho importante para melhor compreendermos a dimensão concreta deste problema.

A floresta Mau, cinco vezes maior que a província de Nairobi, a sudoeste das Terras Altas, tem uma das maiores taxas de precipitação do Quénia e constitui a maior zona de retenção de água do país. Aí nascem doze rios e a floresta alimenta mais de vinte e cinco cursos de água que por sua vez alimentam cinco lagos da região incluindo o Lago Nakuru, no centro do parque natural com o mesmo nome, um dos mais famosos do país, que acolhe anualmente milhares de flamingos em migração e é lar para muitos outros animais selvagens incluindo a maior população de rinocerontes brancos do Quénia, o Lago Naivasha, essencial para uma das principais actividades económicas da região, a produção de flores e o próprio Lago Vitória, o segundo maior lago de água doce do mundo, fundamental para a economia e o equilíbrio ambiental do Quénia, do Uganda e da Tanzânia.

Originalmente, a floresta era povoada pelo povo Ogiek, que eram fundamentalmente caçadores-recolectores e cujas actividades tinham um impacto muito reduzido no ecossistema.
No entanto, a partir de finais da década de oitenta e sobretudo durante os anos noventa, tudo mudou. A floresta Mau, com terras extremamente férteis, passou a ser encarada não como bem público, mas como um bem de interesse político e começou a ser uma prática comum a concessão de terrenos florestais em troca de favores políticos e para pagar serviços de vária ordem. Para além dos vários membros do parlamento que são grandes proprietários (ou foram e entretanto venderam os terrenos com lucros elevados), há inúmeros funcionários públicos que foram beneficiados com terrenos no Mau, como os antigos militares que constituíram a força de manutenção de Paz na Serra Leoa. O antigo presidente Daniel Arap Moi, por exemplo, é proprietário de uma das maiores plantações de chá do Quénia, em plena floresta.
Desde o início da ocupação sistemática do Mau até aos nossos dias, cerca de 40% da floresta foi destruída para dar lugar à actividade agrícola, que por sua vez recorre tradicionalmente a práticas ambientalmente insustentáveis, como o “cortar e queimar”, ou seja, abater árvores e queimar floresta para criar terrenos de cultivo que em poucos anos se esgotam perpetuando este ciclo de destruição. A redução significativa deste ecossistema originou por sua vez uma redução gradual dos níveis de precipitação que aqui são fundamentais para alimentar os inúmeros rios que levam a água a vários pontos da região. Em algumas regiões do país não chove há dois anos e as últimas épocas das chuvas têm registado níveis de precipitação bastante reduzidos. Talvez mais grave ainda do que a diminuição das chuvas é o facto de a destruição da floresta reduzir a capacidade de retenção de água do Mau, que sempre serviu de “central” natural de captação e distribuição de água. Portanto, para além de chover pouco, quando chove a água perde-se rapidamente.

Várias ONGDs e organizações ambientalistas, incluindo o famoso Green Belt Movement alertam há anos, em vão, para os perigos associados à destruição da floresta Mau. Outras tantas, mais recentemente, alertam para a situação grave de crise alimentar no Norte do país, mas ninguém estava sintonizado nesta frequência e a mensagem perdeu-se. O Norte do Quénia é uma espécie de Terra de Ninguém. É terra de refugiados provenientes dos vários conflitos armados nos países vizinhos (a Somália, a Etiópia, o Sudão), de tráfico de armas e circulação de mercenários e bandidos. É uma terra sem lei, para onde não é possível viajar sem “security permit”, sem escolta armada, onde as estradas pavimentadas são praticamente inexistentes e para onde não circulam transportes públicos. As populações locais, isoladas, estão entregues a si próprias e ao apoio intermitente e difícil de algumas organizações internacionais. Mas quando a seca começou a afectar as principais regiões agrícolas do país, quando os rios começaram a secar, o nível dos lagos e das barragens a baixar e sobretudo, quando a água e a electricidade começaram a ser racionados em Nairobi, o problema passou a ser encarado com seriedade. Tarde de mais, infelizmente, para os cerca de 10 milhões de pessoas que precisam de assistência alimentar para sobreviver. Há muitos anos que não se assistia na televisão a imagens recorrentes de seres humanos esqueléticos a morrer de fome. Mas da mesma forma que o Norte é Terra de Ninguém no Quénia, o Quénia é Terra de Ninguém para o resto mundo e para comunicação social internacional.

No dia 6 de Agosto o City Council de Nairobi iniciou o racionamento de água e electricidade na cidade (que se estende a todo o país, em vários casos de forma mais severa). Nas zonas residenciais a electricidade é suspensa entre as 6h da manhã e as 6h da tarde 3 dias por semana, mas nos bairros de lata, como em Kibera, onde só aí vivem mais de 500 mil pessoas, só há água um dia por semana e quase nunca há electricidade. A conta atribuída aos mais pobres na factura da Seca é muito mais elevada, aumentando os riscos de epidemias de cólera e outras associadas à falta de higiene que só contribuirão para agravar ainda mais o problema. Além do mais, muitos pequenos comerciantes estão a ser afectados pelo racionamento, obrigados a fechar os seus negócios e a despedir empregados. Mas nem só os seres humanos estão a sofrer com a falta de água. Em alguns Parques Naturais o Kenya Wildlife Service tem de fornecer água aos animais, uma vez que os seus pontos de água secaram, e em alguns casos, tem mesmo de transferir alguns animais em perigo, como é o caso dos hipopótamos em locais onde os seus lagos baixaram drasticamente expondo os animais ao Sol. Os pastores também têm sofrido violentamente os efeitos da seca e nem mesmo medidas de última hora do governo, como a compra de animais em risco, para abate e utilização da carne, tem resultado. Alguns pastores Masai, por exemplo, perderam centenas de cabeças de gado e é comum hoje em dia encontrar animais mortos na berma das estradas, como a caminho do Parque Nacional de Amboseli, um dos mais famosos do país, voltado para o Kilimanjaro.

A escalada de problemas expostos pela comunicação social e de debates sobre o problema da seca, da fome e da necessidade urgente de reflorestação da floresta Mau tem sido impressionante. As etnias que se dedicam tradicionalmente à pastorícia, com o gado a morrer por falta de pasto começam a invadir terrenos agrícolas de outros grupos tradicionalmente agricultores e o rastilho dos tão temidos conflitos étnicos pode acender-se a qualquer momento. O conflitos são já muitos, a água é defendida com armas, a comida também. O governo decidiu responder à crise com a expulsão de todos os agricultores da floresta Mau para que se possa proceder à reflorestação. O antigo presidente, voltou à vida pública para dizer que a culpa não é dele, que não fez nada ilegal e que tudo não passa de uma campanha contra ele e o seu antigo governo. O caos está instalado. A única boa notícia, é que pelo menos aqui, agora, o tema está a ser discutido por todos e em todo o lado e a sensibilização para a protecção ambiental está a crescer. O maior perigo, é que tal como acontece com o racionamento de água e de luz, a maior conta desta factura seja paga pelos mais pobres e desprotegidos. A reflorestação do Mau é essencial, mas este processo não pode cair no mesmo padrão de irresponsabilidade social e má gestão que caracterizou a destruição da floresta. As várias campanhas de reflorestação que surgem todos os dias precisam de planeamento. Não basta ir para a floresta plantar árvores, lavar as mãos e vir embora. Os habitantes do Mau, na sua grande maioria não ocuparam ilegalmente as terras onde vivem, compraram-nas ou receberam-nas de alguém e têm títulos de propriedade e precisam ser indemnizados e tratados também com justiça para recomeçarem as suas vidas em outros locais. Os pequenos agricultores, que são a grande maioria, cerca de 15 000 pessoas, não podem simplesmente ser expulsos das terras onde vivem e servir de bode expiatório para o problema da destruição do Mau, quando foram apenas actores de uma peça dramática escrita por maus gestores e maus políticos.

Apesar dos efeitos dramáticos da destruição da floresta Mau, que afectam o quotidiano de todos os quenianos neste momento, esta pode ser uma oportunidade excelente para criar maior consciência na população relativamente à necessidade de protecção do ambiente e nomeadamente da preservação de florestas, para introduzir campanhas educativas que permitam aos pequenos agricultores aprender formas de cultivo mais sustentáveis e para planear a reflorestação e a gestão de recursos ambientais. Resta saber se os actuais políticos são melhores que os anteriores, mais responsáveis e melhores gestores e se vão aproveitar ou não esta oportunidade.

31/08/09

A MINHA MAIS RECENTE AVENTURA :)

Estava para aqui a trabalhar na minha tese há uns meses, quando comecei a sentir necessidade de fazer mais do que isso. Isto de ser perguntadora* é muito giro e tal, mas é muito solitário e eu, habituada a bolir em todas as direcções comecei a sentir-me um bocadinho inútil e com saudades de fazer voluntariado e de dar formação... é verdade! e assim as duas vontades juntinhas, logo de uma assentada.
Comecei a procurar organizações que aceitassem os meus préstimos à borlix. Não foi fácil arranjar um projecto que me seduzisse... sim, que eu trabalho à borla mas tenho de estar apaixonada pelo que faço. A maioria das instituições ligadas à Igreja... Cruzes, Credo, Canhoto! Não são para mim. Há por aí muito crente que pode ajudar. Depois algumas, só aceitam voluntariado a pagar, o que me parece um abuso. E outras ainda, com projectos que não me conquistavam. Foi o caraças, mas lá acabei por encontrar um projecto que me conquistou e um lugar onde podia fazer voluntariado através da formação. Ouro sobre azul! Cerejas em cima dos bolos!

Chama-se Ruiru Rehabilitation Center (o link está aqui do lado direito para quem quiser espreitar) e é um centro de acolhimento de órfãos entre os 6 e os 16 anos. É um centro muito pobre, que acolhe 53 crianças e jovens em 3 "barracos" de lata, tão bem organizados quanto possível. Foi um projecto criado de raiz, sem apoios nenhuns, por alguns mzungu e outros quantos locais que a pouco e pouco envolveu a comunidade de Ruiru, que é uma zona industrial e foi recebendo donativos e contribuições em género, incluindo a oferta do terreno onde está instalado o centro. Neste momento só existem dois dormitórios e as respectivas latrinas, uma sala multiusos (que serve de refeitório, espaço de lazer e sala de aulas) e uma pequena cozinha. Há um projecto para construir uma casa a sério quando se reunir os fundos necessários.
No centro está permanentemente um dos dois funcionários. Todas as crianças vão à escola, há uma constante tentativa de manter a proximidade com a família alargada, se for o melhor para elas. Em alguns casos os miúdos estão mesmo entregues ao centro e à sua sorte. Alguns têm histórias muito complicadas. Uns quantos ficaram órfãos recentemente, aquando da violência pós-eleitoral de 2008. Dois irmãos mal falam. Viram a mãe ser violada e assassinada... há várias histórias assim.
Mas há também um espírito magnífico no centro, de cooperação, entreajuda e muito afecto. Os mais velhos cuidam dos mais novos, todos ajudam nas tarefas domésticas (mesmo os rapazes, o que, aqui, é lindo) e há um sistema de compensação que aprecio particularmente. Os melhores alunos têm direito a uma viagem no final do ano lectivo (no último foram a Mombasa ver o mar e ficaram encantados), os mais bem comportados também têm compensações, assim como os mais solidários... é bonito. A comunidade local dá um apoio precioso, a fábrica do pão fornece pão diariamente, a do leite fornece leite, a da fruta igual e muitos voluntários da região contribuem para o centro.
Eu fiquei responsável por acompanhar os mais velhos e facilitar actividades que vão ao encontro das necessidades deles. Discutimos em conjunto o que seria melhor para começar e eles pediram qualquer coisa que tivesse a ver com orientação profissional porque em breve vão ter de ser autónomos. Ontem, por exemplo, passei o dia a trabalhar com eles a descoberta de potencialidades e pontos fortes de cada um e a forma de os maximizar e orientar para determinadas profissões. A auto-estima é algo a trabalhar constantemente pois eles sentem-se menosprezados e desvalorizados. É um desafio fantástico. E tenho aprendido tanto com eles! Alguns são miúdos com garra, duros; outros são dóceis e muito frágeis e eu sou só uma mzungu perguntadora lá no meio a tentar ajudá-los a ser a versão melhor deles próprios. Gosto disto!

* tradução literal da palavra swahili para investigadora "mtafiti"

24/08/09

ÀS VOLTAS NO NYANZA - ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Kisumu - Esta é a terceira maior cidade do Quénia, capital da província do Nyanza, situada numa extensa baía do Lago Vitória. Rodeada pelo lago e pelos imponentes montes Nandi, a cidade tem uma geografia peculiar. A actividade comercial é intensa e não faltam mercados, supermercados e milhares de vendedores de rua. O trânsito, composto pela mais variada parafernália de transportes do país, a saber: os omnipresentes matatus, os preciosos tuk tuk, os boda boda (bibicletas de passageiros) e os piki piki (motos de passageiros), é caótico e colorido e pode ser hilariante. Apesar da correria e do frenesim comercial também aqui há parques, zonas verdes e belos bairros residenciais e as pessoas são na generalidades simpáticas e generosas.

Lago Vitória - Apesar de mítico e possuidor de uma beleza extraordinária o lago não parece atrair muitos turístas, nem o Quénia parece ter muito interesse em desenvolver infraestruturas de lazer e turismo, como acontece nos países vizinhos. Infelizmente, as margens do lago estão basicamente recheadas de bairros de lata de pescadores pobres. É difícil encontrar um parque junto à água, um restaurante, um hotel, um espaço de lazer. Mas existem… é preciso é ser perguntador e procurar debaixo das pedras. O Kenya Wildlife Service tem aqui um santuário interessante, mesmo na margem do lago, a poucos quilómetros da cidade, o Impala Park. É um belo lugar para passeios, piqueniques e muito fotogénico. Um pouco mais adiante há uma pérola, o Kiboko Bay Resort, que fica na margem, com uma paisagem de cortar a respiração e onde se pode pernoitar a preços decentes em super tendas com chão e casa de banho e mobília, comer divinamente no restaurante, no jardim, ou na piscina (experimentei camarão com erva príncipe e chorei por mais) e passear de barco no lago com direito a visita aos hipopótamos que se banham pelas margens (a não perder). Não há muitas mais opções turístcas na região, excepto um resort de luxo numa das ilhas do lago e um muito interessante pequeno resort com cabanas de tecto de palha em Mbita, no extremo sul do lago, do lado do Quénia, claro! Que eu ainda não sei se vou visitar esta semana. Depende dos transportes e dos Census 2009.

Transportes - Dentro da cidade e entre grandes cidades, há imensos e variadas opções. No entanto, nos percursos regionais entre cidades mais pequenas a coisa limita-se ao matatu, o que aqui é um bocadinho pior do que em outros lugares porque parece haver um entendimento tácito entre os matateiros e a polícia por forma a estes circularem com gente a sair pelas janelas. Estou a falar de viaturas de 14 lugares que levam em média 20 pessoas por viagem. Não é bonito! Hoje, por exemplo, tive oportunidade de fazer uma destas viagens maravilhosas entre Kisumu e Kisii, a cerca de 2h de distância. Tudo é mais organizado que nos circuitos urbanos, é certo, o que ajuda um pouco. Em vez de as pessoas se sentarem no colo umas das outras ou nos intervalos dos bancos, os matateiros fornecem pequenas tábuas rijas para colocar nos espaços entre os bancos. Haja conforto na viagem! Ora, como o que tem de ser tem muita força e eu tinha mesmo de vir a Kisii porque só aqui há 3 associações de CJ, lá tentei negociar um lugar à janela, na frente, com espaço por baixo dos meus pés para a mochila, por 2,80 euros. Nada mau. A viagem acabou por ser medianamente confortável, rápida e sem dúvida barata. Quanto à ida a Mbita, tenho de averiguar a distância porque um mzungu tem limites.

Census 2009 - Está na ordem do dia: hoje é dia de recenseamento nacional sob o slogan “Rise and be counted” (os quenianos são muito dramáticos). Espantosamente, uma coisa tão normal para uns pode ser uma dor de cabeça para outros. Aqui é uma verdadeira enxaqueca. As pessoas desconfiam de tudo. O facto de terem de responder a questões sobre pertença étnica fá-los temer represálias tribais, as questões sobre rendimentos fá-los temer a polícia… enfim… e no meio disto tudo há ameaças de “terrorismo” por parte de grupos extremistas que tentam assustar ainda mais as pessoas e um sem fim de programas de televisão e de rádio a tentar explicar aos cidadãos o que se passa. Tudo se vai desenrolar entre as 18h e as 22h de hoje. Supostamente todas as casas do Quénia serão visitadas por recenseadores devidamente identificados e treinados, acompanhados, nos meios rurais, pelos Mais Velhos ou Autoridades locais. A polícia está em alerta máximo (o que quer que isso seja!) e como nunca se sabe a que nível do imponderável as coisas podem chegar, a minha possível ida a Mbita está congelada até ter a certeza que toda a gente se levantou e foi contada em paz e sossego. Pela minha parte, estou à espera que me contem, sim, porque os turistas, estudantes, imigrantes etc, também têm de ser contados. Depois, conto como foi a contagem cá em casa!

21/08/09

Mas como é que alguém...??... eu, claro!

Na loja da Safaricom em Kisumu, hoje.

- Sim, já verifiquei tudo, tenho saldo, tenho o cartão inserido, marco o código certo... tudo. A única coisa que está mal é que a placa não faz a ligação à internet!

- Ontem tivemos um problema por causa da trovoada, mas hoje as ligações estão normais!

- Pelos vistos a minha não está (denotando alguma impaciência!). Tente ver o que se passa, por favor, porque deve ser alguma anomalia com o cartão.

- Deixe-me só levar o cartão para verificar uma coisa e já volto!

(Passam-se minutos infinitos de ansiedade sem notícias)

- Ora cá estamos outra vez. Diga-me uma coisa, saiu do país?

- O quê??? Não!...

- Estranho, porque tem o cartão da banda larga com tarifário de roaming...

- Não pode ser. Eu só uso esse cartão na placa de banda larga. Para o telemóvel tenho outro cartão.

- E nunca usou o cartão da placa no telemóvel?

- Eu não!!! Só o coloco no telemóvel para... para... Nãããão! Não pode ser! (e aqui comecei a rir)

- Para introduzir os dados e creditar saldo, certo? (completou o funcionário a rir também)

- Pois... se calhar troquei os cartões... e olhe... então por ainda estar com o tarifário de roaming é que ando a gastar uma fortuna em telemóvel, certo!?

- Pois... é muito mais caro!

Resumindo: a internet funciona lindamente, aqui a morcona é que de vez em quando faz das suas. Mas felizmente ainda bem que aconteceu senão andava a pagar tarifário de roaming até ao fim dos meus dias no Quénia :).

18/08/09

ÁFRICA MINHA

No meio de tantas notícias más e sérias e depois dos últimos posts mais pessimistas, hoje vou esquecer os problemas do mundo e partilhar convosco outra coisa.
Finalmente encontrei o que tanto ansiava. É difícil de explicar, é algo que se sente. Basicamente é aquilo que me faz querer voltar a África quando estou longe. Estou muito mais feliz!
A viagem de Nairobi para Kisumu durou umas 7h. Éramos 4 mulheres num Rav4 pois vim de boleia com 3 freiras do convento onde estou hospedada (a residência da minha primeira melhor amiga, que conheci nas aulas de Swahili) e entre muito boa disposição e risota fomos parando vezes sem conta pelo caminho, para comprar queijo (queijo, no Quénia, imaginem!!!), para comprar frutas, hortaliças e sei lá que mais aos vendedores de beira de estrada, que colam a mercadoria e a cara aos vidros do carro impedindo-nos de sair para fazer as compras. É preciso lutar com determinação e querer muito os produtos para se conseguir sair e comprar qualquer coisa. Foi portanto, com 4 mulheres, muitas malas e comida que atravessamos uma das partes mais belas do país. A viagem é emocionante! Passamos pelo Rift Valley, por parte da floresta Mau, por quilómetros e quilómetros de plantações de chá, por outros tantos de plantações de cana de açúcar e de arroz, por montes e montanhas e vales até que, chegamos finalmente ao lago. Se bem que Kisumu é geograficamente uma baia é possível, mesmo assim ter uma ideia da dimensão. Parece mar, sem fim e a janela do meu quarto está virada para lá.
Hoje foi o primeiro dia de trabalho. Era preciso começar a visitar as organizações de Comércio Justo locais. Na internet nenhuma delas tinha endereço físico e resolvi ir ao mercado de artesanato a ver se alguma banca pertencia a estas organizações para me indicarem onde ficavam as instalações e oficinas. Foi logo à primeira. Uma chamada telefónica da menina da banca e meia hora depois tenho a directora de uma delas a chegar de carro para me levar em visita. Resumindo o que a trabalho diz respeito, a coisa correu tão bem que esta vai ser um dos meus casos de estudo e já está tudo organizado para a minha estadia.
Mas a forma como cheguei a esta organização foi apenas o prelúdio daquilo que o dia me reservava. Na primeira viagem que fiz de matatu, duas raparigas que iam no banco atrás de mim, batem-me no ombros, tocam-me no cabelo e entre rizinhos perguntam-me se os meus caracóis são verdadeiros… podia ter levado a mal, é verdade! Mas não, antes ri-me com elas, apresentamo-nos e nunca mais pararam de me fazer perguntas, ao ponto de dar por mim a explicar a toda a gente dentro do matatu o que era o Comércio Justo e a distribuir abraços à saída, para além de ter ficado com o telefone das moças e prometer visitar a casa delas qd tiver oportunidade. Entretanto, porque precisava de voltar á mesma organização de tarde, resolvi apanhar um tuk tuk que se perdeu no meio da cidade porque cismou que ele, e não eu, é que sabia como chegar ao local. Típico! O que não é típico é ele chegar ao destino perdido de riso por eu saber o caminho e ele não e fazer um desconto no preço pela incompetência dele e pela simpatia minha.
Já pelo fim da tarde, a chover torrencialmente, e a caminho do convento que fica uns quilómetros fora da cidade e requer matatus interurbanos, pergunto a uma rapariga qual o matatu certo para o meu destino e ela resolve levar-me lá, contra a direcção da viagem dela e oferece-se para me pagar a viagem. (Dizia ela que sempre que vai a Nairobi fica tão perdida e ninguém a ajuda, que quando pode dá sempre uma mãozinha a quem vem de fora) Estes matatus interurbanos, não têm controlo de lotação e além de mim viajavam lá dentro mais 19 pessoas, ao que somavam dois sofás no tejadilho e as almofadas dos mesmos distribuídas pelos passageiros. Só hoje conheci mais gente, falei com mais estranhos e tive mais demonstrações de generosidade e simpatia do que ao longo dos últimos meses em Nairobi, onde as pessoas só se aproximam para mendigar ou para tentar extorquir dinheiro. Para além do factor humano fundamental, em Kisumu parece Verão, com 30º de calor húmido e está sol. Foi o dia mais produtivo e provavelmente mais feliz que tive desde que cá estou!

14/08/09

AS MUDANÇAS À MINHA PORTA

Ultimamente parece que o mundo está a mudar a uma velocidade alucinante, à frente dos meus olhos, enquanto eu estou sossegadamente sentada no meu sofá, como se estivesse a ver um filme em modo acelerado.
Uma grande parte das coisas que tenho lido e aprendido sobre as mudanças climáticas, a pressão demográfica e o desenvolvimento parece que teimam ultimamente em sair dos livros e materializar-se aqui. Em alguns casos é fascinante, noutros é assustador, mas em ambos os casos fico com a sensação de viver num laboratório.
Por exemplo, apesar de as mudanças climáticas serem evidentes em todo o mundo e de termos acesso a informação sobre o que se se passa por todo o lado, nesta região de África começam a sentir-se consequências ambientais, económicas e sociais que ainda não se sentem na Europa, pelo menos de forma tão óbvia. No corno de África e na região dos grandes lagos, o aquecimento global traduz-se numa enorme redução da precipitação anual, que se tem vindo a sentir há alguns anos e que agora resulta numa seca intensa. A seca origina perda de colheitas, redução do caudal dos rios, baixa do nível dos lagos ou mesmo desaparecimento de alguns e isso põe em perigo o equilíbrio dos ecossistemas, a segurança alimentar, a biodiversidade e a paz social. Agora que a seca também se sente intensamente na capital, onde a electricidade é racionada e a água também, multiplicam-se as notícias sobre o impacto económico daí resultante (com negócios e empresas afectados e aumento do desemprego) e outros, que me pareciam ainda mais distantes como o facto de numa região de forte implementação da pastorícia, a perda de pasto levar os pastores a invadir terrenos agrícolas para alimentar os animais. Ora sendo a divisão das actividades laborais muito marcada etnicamente (entre pastores e agricultores) estas tensões sociais podem acender o rastilho do sempre latente conflito étnico.
A fome é um facto em muitas regiões do Quénia e nos países vizinhos. As lutas internacionais, regionais e étnicas pelo acesso e domínio da água também. As novas doenças e epidemias, como a gripe suína já chegaram e atingiram crianças de uma escola primária isolada, sem ninguém perceber como. Por entre um não acabar mais de problemas e consequências nefastas, multiplicam-se também os esforços para os solucionar e atenuar. O governo do Quénia criou um programa de emergência para apoio alimentar às regiões mais afectadas e isoladas, com a ajuda dos militares. A Cruz Vermelha do Quénia e outras organizações locais fazem recolha de alimentos nos supermercados e apelam à solidariedade nacional. Apesar de todas as organizações internacionais e do Apoio do Programa Alimentar Mundial (muito insuficiente) é bom ver os quenianos a tentar resolver os seus problemas.
A reflorestação e protecção dos ecossistemas está na boca do mundo, é tema de conversas de café e título de todos os jornais. O Presidente resolveu ontem promulgar a prisão imediata de todos os "settlers" da floresta Mau que não abandonem os seus terrenos (há um esquema de compensação para quem provar a propriedade das terras), mesmo sabendo que muitos são familiares e amigos de Membros do Parlamento e de gente muito importante. Claro que a transição para a reflorestação da floresta deveria ter sido feita com tempo e ter uma forte componente educacional (os agricultores habituados à técnica do "cortar e queimar" floresta para cultivar vão continuar a faze-lo noutro lugar) mas de alguma forma está a ser feita e isso já é positivo.
E num contexto de profunda injustiça social e económica onde a consciência social e de cidadania quase não existe, onde as pessoas fazem muito pouco para se defender a si próprias e parecem preferir esperar pela intervenção divina, foi lindo, ontem ligar a televisão e ouvir centenas de trabalhadores da Kenya Airways, a horas de iniciarem uma greve nacional depois de falhadas as negociações do sindicato com a companhia, a cantar "the people united cannot be defeated".
O Quénia é um belo lugar para assistir de camarote ao bom e ao mau dos nossos tempos. É como ver o mundo a mudar mesmo à minha porta.