05/11/09

QUE GÉNERO DE IGUALDADE QUEREMOS CONSTRUIR?

O casamento entre dois homens de origem queniana, que teve lugar recentemente no Reino Unido, deu origem no Quénia a expressões de homofobia próximas do delírio colectivo mas abriu o debate, ainda que muitas vezes insano, sobre um dos maiores tabus deste e de muitos países africanos. E quando a maioria, incomodada simplesmente por ter de falar no assunto, preferia que os homossexuais simplesmente não pudessem existir, eu questiono-me até que ponto não estamos nós todos, ainda que através do silêncio e da negligência, a participar neste jogo perigoso contra os direitos individuais, quando criamos, por exemplo, Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, que defendem a igualdade de género apenas numa perspectiva heterossexual moralista.

Um dos argumentos mais utilizados e quanto a mim dos mais absurdos e desinformados, é o de a homossexualidade não existir em África e de a sua defesa ser uma forma de imperialismo ocidental. Ora o imperialismo tem as costas larguíssimas por aqui e a sua definição é bastante selectiva. Também é considerado imperialista, por muitos, a defesa dos direitos das mulheres ou a insistência da comunidade internacional na necessidade de acabar com a corrupção, ou até os direitos laborais. Claro que já não é de todo imperialista a dinâmica cada vez maior de destruição ambiental ou os padrões de consumo. A referência ao imperialismo serve sobretudo para accionar o sentimento de culpa ocidental quando se tenta promover direitos e liberdades, como se as culturas fossem estanques, fechadas ao mundo e às influências exteriores e como se fosse possível cristalizá-las. Ou seja, como se fosse possível ter telemóveis de última geração e internet e dar a volta ao mundo em algumas horas, mas continuar a viver de acordo com a sociedade do tempo de Jesus ou Maomé, sociedade esta, ainda por cima, interpretada ao bel prazer de cada um, de cada pastor, de cada padre, de cada líder muçulmano.

No Quénia, a respeito desta questão, a única coisa verdadeiramente imperialista, é a lei que criminaliza a homossexualidade, que foi introduzida no início do sec. XX pelo governo colonial britânico, baseada numa lei inglesa de 1533, que tornou o crime punido com pena de morte até 1861, altura em que foi reduzida para prisão entre 10 anos a perpétua. Em Inglaterra a homossexualidade foi descriminalizada em 1967 pelo “Sexual Offences Act”, mas mantém-se no Quénia onde esta herança do imperialismo britânico justifica, agora, um puritanismo africanista que não é mais que o resultado deste cocktail onde a uma lei caduca dos ingleses, se junta o fundamentalismo religioso (de todas religiões), o obscurantismo e o desrespeito pelo indivíduo.

O artigo de opinião de Okiya Omtatah Okoiti, com o título “Unlike Christianity and Islam, homosexuality is unAfrican”, publicado no Daily Nation resume na perfeição o tipo de posições que se esgrimiram a propósito deste assunto. Mas outros argumentos competem para a insanidade da discussão a que por cá se assiste, entre os quais, a ligação constante da homossexualidade à pedofilia com várias pessoas a afirmarem que se se aceitar um comportamento estamos a um passo de aceitar o outro. Esquecem-se, estes malabaristas da retórica, que num caso estamos a falar do comportamento sexual consentido entre dois adultos e noutro de abuso sexual de menores. Se pensarmos que esta semana foi notícia de primeira página um relatório que denuncia o abuso sexual continuado de milhares de raparigas quenianas, nas escolas, pelos próprios professores, homens supostamente heterossexuais, e que o impacto da notícia foi muito menor do que a do casamento destes dois cidadãos quenianos, algo vai muito mal. Não entendo!

Felizmente, muitas foram também as vozes que se ergueram para refutar estes argumentos violentos e defender a privacidade do casal em causa, apesar do risco, sempre presente, de serem eles próprios acusados de serem homossexuais (caso contrário não os defenderiam, no pensamento de muitos). Recordo em particular uma observação de uma das principais cronistas da imprensa queniana, uma mulher sem papas na língua, que afirmava a propósito, que o maior problema dos quenianos era preocuparem-se em demasia com o que se passa em cama alheia. Eu não podia concordar mais!

Mas a bem da discussão, independentemente dos argumentos, o melhor de tudo foi ter-se criado espaço para falar em público de tão grande tabu. Os jornais foram invadidos literalmente por e-mails e cartas veementes, contra e a favor, a questionar e a informar… enfim, a opinar sobre a homossexualidade.

Mas a defesa da homossexualidade é uma falsa questão. Não é a homossexualidade ou a heterossexualidade que deve ser defendida, mas os indivíduos que, independentemente das suas orientações sexuais, papéis sociais ou de género devem ter acesso aos mesmos direitos de cidadania e ao respeito. E é por isto mesmo que as políticas de desenvolvimento e nomeadamente os ODM, ao centrarem-se exclusivamente na promoção da igualdade de género, estão a ser insuficientes e a pactuar com uma visão redutora da sexualidade humana assente na heterossexualidade e na dicotomia do masculino e feminino. Nem sequer vou argumentar recorrendo a Foucault ou outros pensadores contemporâneos sobre a construção social do próprio sexo, que tem muito que se lhe diga, como resposta à recorrente visão funcionalista da sexualidade e sobre o que é “natural” ou não é “natural”.

Quero apenas deixar aqui um alerta preocupado, para a necessidade de se ir mais longe e com mais empenho na defesa dos direitos dos indivíduos que é tão frágil em tantos lugares do mundo. Apesar de compreender, de certa forma, a limitação dos ODM no que respeita à defesa exclusiva da igualdade de género, como forma de centrar todos os esforços e recursos nessa batalha árdua, não posso deixar de achar a estratégia perigosa e reflexo de um certo moralismo ocidental, onde apesar do muito já alcançado em termos da garantia de direitos individuais, se continua a advogar a heterossexualidade como modelo de comportamento sexual “correcto“. Acredito sinceramente que seria muito mais produtivo e justo defender a igualdade entre todos os indivíduos, independentemente da sua cor, etnia, género, orientação sexual, classe social ou religião. Seria mais difícil, é certo, pois não há sociedades perfeitas onde todos vemos expressas as nossas convicções e valores, mas promoveria o respeito pelas diferenças e o diálogo.

3 comentários:

ruca disse...

Pois é, rapariga, não posso deixar de concordar contigo na maior parte, mas também não posso deixar de discordar nalgumas coisas - espero que não me "excomungues". :)
1. Tens toda a razão em relação aos OMD; mas nada podemos dizer sobre os OMD quando a própria OMS (e corrijam-me, por favor, se estiver errado) continua a considerar a homossexualidade uma doença... (pelo menos, era o que acontecia até há pouco, quando confirmei isso mesmo). Curiosamente, os médicos são os seres mais moralistas e religiosos à face da terra - nunca percebi muito bem porquê...
2. O imperialismo é sempre muito bom, quando vem a propósito. Coitados é dois países que "imperializaram", em vez de serem "imperializados", e que, agora, não têm desculpas a dar. :)
3. Infelizmente, o tema não está mal só no Quénia ou em África. Em Portugal continua-se a debater a coisa e, quando o Governo anuncia que vai avançar com o "casamento" homossexual, temos a direita toda e os padres a exigir que se faça referendo. Mas acho que é por isso que todos temos uma palavra a dizer.
4. Por isso é que não gosto que as pessoas me digam que não são políticas, quando o que acontece é que estão a confundir política com partidarismo. Mal estariamos se fossemos seres apolíticos!
5. O que eu não concordo: que estejamos "todos (...) a participar neste jogo perigoso contra os direitos individuais". Eu percebo que, quando digas "nós todos", te estejas a referir às instâncias governativas (nas quais, obviamente, temos voz, ainda que mais ou menos directamente); mas quero acreditar que, a cada palavra que pronunciamos para denunciar aquilo que achamos que está mal, em vez de tentarmos disfarçar que está tudo bem porque há coisas boas, em vez de fecharmos os olhos e protestarmos porque nos dizem que algo está mal, é mais um esforço no sentido de contribuir para que as coisas mudem. Agora, como sempre, o processo é lento. Mas há que ter esperança!
Muitos beijinhos e muita força e muitos pozinhos de esperança para ti.

African Queen disse...

Que bom ver-te por aqui moço :)! Qual excomunhão, qual quê? Eu gosto mesmo é de opiniões, mesmo que sejam diferentes da minha, o que nem é o teu caso.
Deixa-me só dizer-te umas coisinhas:
1. Confesso que não sabia e vou investigar. A ser assim estamos mesmo muito mal. Sobre médicos, só te posso dizer que tenho um que é marxista-leninista educado na ex- URSS e que de cada vez que lá vou falamos mais do estado do mundo do que do meu estado de saúde LOL.
2. As palavras por vezes esvaziam-se de sentido qd são utilizadas indescriminadamente.
3. Claro que não é um problema só do Quénia ou de África... antes fosse, mas a questão é mesmo a da saudável discussão... que quer gostemos ou não dos argumentos destes ou daqueles, sempre vamos tendo no nosso burgo. Por cá já não é assim e é crime. Estou farta de conversas de café em que me atiram com a biblia ou com o corão à cara para acabar à partida com a maior parte das discussões, entre as quais esta.
4. Totalmente de acordo
5. Percebo-te e sim, estava a referir-me às instâncias governativas, mas tb sei e tu tb sabes que muita gente se demite das suas responsabilidades sociais. Sobretudo os tais que dizem que não gostam de política, que convenhamos são a maioria e estão em todo o lado. Nunca mais esqueço a propósito do referendo sobre a legalização do aborto, de uma amiga que me perguntou muito chocada "mas achas isso mesmo importante!?" a propósito de eu querer ir votar em vez de outra coisa qualquer. Fiquei perplexa e estou certa que muitos pensam como ela, o que é triste. E nem se trata de ser pró ou contra, mas de participar no debate e nas decisões democráticas.
Felizmente tb há muitos que vão partindo pedra em todo o lado, aí como aqui :)

Mónica disse...

Concordo plenamente maninha! O último parágrafo traduz perfeitamente a minha opinião, a favor da igualdade qualquer que seja a orientação sexual de cada um, qualquer que seja a religião, cor ou sexo...em suma, quando isso acontecer, o mundo atingirá a "quase perfeição"!
Beijinhos :-)))