29/11/07

Catwomen

A noite caía rapidamente sobre a cidade. Em poucos minutos a luz amarela dos candeeiros de ferro substituiria o sol e as sombras tomariam o lugar das árvores, dos edifícios, dos vultos, das estátuas de anjos e das lápides do cemitério. Dentro de pouco tempo apenas as velas a arder, com as chamas intermitentes e açoitadas pelo vento frio do Inverno pareceriam ter vida naquele lugar.
O guarda fazia a ronda habitual para se certificar que todos tinham saído e que podia fechar o cemitério. Só se ouviam os passos dele a percorrer o labirinto de caminhos sem saída. Sem um único ruído e sem aviso, algo saiu de traz de uma lápide lançando-se no ar mesmo à frente do guarda, para cair do outro lado do caminho e desaparecer de imediato por entre as sombras do mar de velas que se abria do lado esquerdo.
- Aghhh! Raios… malditos gatos! – gritou e praguejou o homem, tentando recompor-se do susto – Não admira que andem a envenenar esta bicharada toda. Parece uma praga!
E apressou-se na ronda para sair dali o mais rapidamente possível.

- Pretinha! Onde estás? Anda comer… olha as coisas boas que te trouxe hoje – chamou a D. Cininha baixinho, a sussurrar, enquanto abria um saco de plástico e retirava uma lata de comida para gatos.
- Linda… isso… anda papar que a Cininha não te faz mal. Isso, linda menina… é bom, não é? Vocês não podem comer sempre comida seca, têm de papar desta também… hummmm tem um cheirinho… papa tudo Pretinha, tudo, que estás muito magrinha.
A Pretinha era a grande preocupação da D. Cininha. Há muitos anos que diariamente alimentava e protegia todos os gatos do bairro. À sua passagem os pequenos felinos saíam dos seus esconderijos para a cumprimentar, para lhe roçarem as pernas, para lhe seguirem os passos na esperança dela lhes dar petiscos e mimos. Todos, menos a Pretinha. Essa nunca se aproximava, só vinha comer depois de todos terem desaparecido e a D. Cininha tinha desenvolvido uma teoria para justificar este estranho comportamento. Ela achava que a gatinha tinha sido muito maltratada por alguém, de forma tão vil que ficou traumatizada e se recusava a aproximar-se das pessoas. Era uma mulher doce, a D. Cininha, muito serena, franzina, com o cabelo todo branco e o rosto bem sulcado pelo tempo, que passou por ela sem generosidade.
- Então e os outros meninos, onde andam eles, pequenina? – perguntou curiosa, enquanto observava a gata a comer mantendo alguma distância respeitosa. – Os da rua de traz já comeram, passei por lá antes de vir para casa. Havias de ter visto a Malhada! Já está boa da operação. Está linda, com o pêlo brilhante, parece uma rainha… que foi? Não queres mais? Paraste de comer… que se passa, meu amor?
Num ápice, a gata desapareceu na noite e a D. Cininha começou a ver outros gatos a aproximarem-se.
- Ai, Valha Deus que aquela bichinha é tão medrosa… Vá lá que comeu quase tudo hoje – inquietou-se. – Venham meus queridos, venham à mamã, olhem as coisas boas que vos trouxe hoje para o jantar – disse ela para os gatos que lhe rodeavam as pernas e que a olhavam expectantes.

- Bom dia D. Cininha! Como estão os seus meninos?
- Ó D. Aninhas, ando tão preocupada com a minha Pretinha… ela anda tão magrinha. Tenho medo que se não comer bem depois acabe por comer porcarias e tocar em alguma coisa envenenada.
- Pois é… já viu que coisa medonha. Quem é que tem coragem de matar assim os bichinhos. Eu também ando com o coração nas mãos por causa dos meus D. Cininha. É certo que a minha zona ainda é longe do cemitério, mas vá-se lá saber… com um criminoso desses à solta. Olhe quem vem lá… - interrompeu - … D. Tininha, então a senhora está boazinha? Vem para a nossa beira hoje?
- Bom dia senhoras. Vim saber desse assassino dos bichos. Há dois bichanos que não me aparecem há que tempos e não foram às gatas senão já tinham voltado.
- Ai D. Tininha, que até se me dá um aperto no peito só de pensar nesse malvado – disse a D. Aninhas muito perturbada.
- Hoje até vinha a notícia no jornal – afirmou a D. Cininha – quase todos os dias têm encontrado gatos mortos aqui no cemitério. Ninguém imagina quem andará a fazer tamanha maldade, mas eu vou descobrir… ai se vou!
- Olhem, vem aí o Sr. Freitas, o guarda… será que ele sabe de mais alguma coisa? – perguntou a D. Aninhas, encaminhando-se rapidamente para ele.
- Bom dia, minhas senhoras – cumprimentou o guarda a sorrir -, como está a Comissão de Defesa dos Gatos?
- Lá está o senhor Freitas a brincar com a gente. Olhe que andamos bem aflitas com esta história dos gatos envenenados. Não há direito! Até pode não se gostar dos bichos, mas não é preciso fazer-lhes mal, meu Deus – disse a D. Aninhas indignada. – Já sabem de mais alguma coisa?
- Olhem, eu estou convencido que o assassino dos gatos mora cá no cemitério – afirmou peremptório o guarda, enquanto se benzia; – têm acontecido para aqui umas coisas muito estranhas, barulhos na noite, restos de comida, coisas partidas e fora do sítio… Só vos digo que tem de ser uma alma do outro mundo, que eu não saio daqui sem vasculhar o cemitério todo e nunca cá vi ninguém.
As três mulheres ficaram em alvoroço, incrédulas com tamanha insanidade e depois de tentarem chamar o guarda à razão, de lhe fazerem ver o disparate daquela ideia, lá voltaram costas e seguiram pela rua principal do cemitério, de braço dado.

- Pretinha, onde estás? Anda, minha pequenina… anda papar – gritava a D. Cininha, para fazer-se ouvir no meio daquele temporal.
A chuva e o vento cortante a salpicar a lama dos caminhos, a curvar as copas das árvores e a fazer voar jarras, lamparinas e flores tornavam aquela tarefa muito mais difícil. A pobre mulher, coberta por um poncho impermeável, mas completamente encharcada, de saúde débil, percorria o cemitério com a ajuda de uma pequena lanterna que mal lhe iluminava os passos. O vento silvava com fúria e não havia sinais dos gatos, nem de vivalma nas redondezas. A D. Cininha, dando-se por vencida, atou o saco plástico da comida ao pulso, apertou com mais força o poncho junto ao pescoço, para se aconchegar, e seguiu a custo para casa, curvada, a tentar iluminar o caminho e a respirar com dificuldade.
Depois de atravessar a avenida, onde ainda havia alguma luz, dirigiu-se para o caminho estreito e escuro que levava ao pequeno beco onde morava. A chuva intensificou-se e não deixava ver nem um palmo à sua frente quando de repente, ouviu miar e sentiu o desconforto do pêlo molhado a roçar-lhe as pernas. Era a Malhada, que seguia à sua frente a miar para lhe mostrar o caminho de casa. Quando chegou ao fim do beco onde morava subiu o primeiro degrau e apoiou-se numa saliência da parede granítica, escorregadia, para abrir o ferrolho do portão de ferro. Um relâmpago iluminava as trevas da noite quando a D. Cininha conseguiu a custo abrir o portão e arrastar-se ofegante para dentro. Cambaleou um pouco e acabou por cair no chão, encostada a uma das paredes. Tirou a custo o poncho encharcado, puxou uma manta para se aquecer e esticou o braço para alcançar um retrato do filho que abraçou junto ao peito, ao mesmo tempo que fechava os olhos e tentava superar a dor que sentia e a dificuldade em respirar.

- Bom dia Sr. Freitas – disse a D. Tininha ao entrar no cemitério de braço dado com a D. Aninhas. – Já se sabe mais alguma coisa sobre o assassino dos gatos?
- Ó minhas senhoras! Ó valha-me Deus, nem imaginam o que por aqui se passou! Eu nem estou em mim…. Isto tem estado uma desgraça desde que aqui cheguei hoje cedo – afirmou o guarda muito agitado e nervoso. – Já sabemos quem envenenava os gatos! As senhoras nem imaginam… nem imaginam!
- Credo, você está a deixar-me nervosa também. Diga lá de uma vez por todas… mas… o que é que aconteceu por aqui? – perguntou a D. Aninhas.
- A outra senhora que costuma andar com vocês, que mora aqui perto e que tem o hábito de dar de comer aos gatos… apareceu morta, dentro do cemitério esta manhã.
- Ai valha-me Deus, pobre D. Cininha, como é que pode ter acontecido uma coisa dessas? Como é que ela ficou aqui dentro a noite toda, ainda por cima, com aquele temporal de ontem… ai coitada da pobre… como é que isto foi acontecer? – interrogou-se a D. Tininha enquanto amparava a D. Aninhas e a ajudava a sentar-se num banco.
- Já veio a judiciária e tudo… ele há coisas que ninguém imagina! Então não é que a D. Cininha vivia aqui dentro do cemitério? É verdade! É verdade – repetiu ele perante o olhar incrédulo das duas mulheres. - Descobriu-se que ela vivia no seu jazigo de família, um dos mais imponentes do cemitério, que fica na ala este, num canto afastado e escondido. Foi um dos coveiros que descobriu o corpo dela de manhã cedo. Viu o portão do jazigo aberto, foi espreitar e deu com o corpo da senhora estendido no chão, já sem vida – explicou o guarda.
- Mas Sr. Freitas ela vinha visitar o jazigo todos os dias. Era lá que estavam o marido e o filho, deve ter acontecido alguma coisa para ela ter ficado presa lá dentro… mas por amor de Deus, daí a viver lá… - afirmou a D. Aninhas muito consternada.
- Pois é minha senhora, mas a sua amiga tinha dentro do jazigo tudo o que precisava para viver: cobertores, lanterna, comida, objectos pessoais e um armazenamento de comida para gatos que nem imaginam… só não percebo porque é que ela os envenenava.
- Ai, não posso crer! A D. Cininha era incapaz de fazer mal aos bichos. Era tudo o que ela tinha desde que o filho morreu há uns anos. Era a única companhia dela e ficou completamente sozinha… os gatos eram a sua família, Sr. Freitas, pode lá ser uma coisa dessas? – explicou a D. Tininha.
- Não sou eu que digo, minhas senhoras, é a polícia. Chegaram à conclusão que a senhora devia estar mal da cabeça e que lhe deu para isto… Encerraram o caso – afirmou o guarda. – E olhem, por falar neles, vêm aí com o corpo… deixem-me ver se precisam de alguma coisa… ai que dia, minhas senhoras… que dia!

Ficaram as duas muito chocadas a olhar a cena. Um grupo de polícias a aproximar-se, com um cadáver coberto numa maca, uma pequena multidão a juntar-se, um dos coveiros a avançar na direcção deles com uma sachola ao ombro e um saco de lixo cheio na mão e a Pretinha a saltar de traz de uma lápide para a Avenida e a Malhada a saltar de uma árvore e os gatos a aparecerem todos, um por um, vindos dos quatro cantos do cemitério… e ainda ninguém tinha dado pela presença deles, além das mulheres que observavam de mais longe, quando de repente, como se um maestro comandasse na perfeição uma orquestra de dezenas de gatos, estes se lançaram em uníssono sobre o coveiro, que entretanto estava no meio da pequena multidão. As pessoas fugiram aos gritos enquanto o homem rolava pelo chão e tentava tapar a cara para se proteger do ataque dos gatos. Os polícias deixaram cair a maca com o cadáver e ficaram perplexos a ver aquela cena. Ninguém podia aproximar-se para ajudar o pobre homem que estava completamente ensanguentado, sem ser atacado também. Quando o homem perdeu as forças para se mexer, os gatos pararam repentinamente, mas as pessoas, perplexas, continuaram imobilizadas a olhar e então, a Pretinha saiu de cima dele e atirou-se ao saco do lixo com as unhas até o conseguir rasgar. Quando o saco se desfez podia ver-se lá dentro comida para gatos suficiente para alimentar toda a comunidade do cemitério e um saco de veneno para ratos, que entretanto escorregou para fora e ficou à vista de toda a gente. Nessa altura, a Pretinha e os outros gatos abandonaram o homem em farrapos, aproximaram-se da D. Cininha e deitaram-se sobre ela e a toda a volta como se estivessem a velar o corpo.

- Podia lá ser, D. Aninhas? É que não lembrava ao Diabo, a pobre da nossa amiga andar para aí a matar os gatos! – disse muito séria a D. Tininha.
- Que disparate! Nunca tinha ouvido nada mais estúpido. Mas viu o que os pequeninos fizeram? Como desmascararam o traste do coveiro? Ai, D. Tininha estou tão comovida… a Cininha, onde quer que esteja, deve estar cheia de orgulho nos meninos dela.
- Vamos, minha amiga, vamos embora que aqui, já não há mais nada para ver… vamos embora que a partir de hoje temos muito mais trabalho… vamos ter de nos organizar para dar de comer aos gatos do cemitério – disse a D. Aninhas, enquanto se levantava e dava o braço à amiga para saírem juntas e voltarem as costas àquela cena trágica.

29/10/07

Super Catarina

Para a Catarina que faz seis anos hoje

A festa de aniversário acabou e estava na hora de ir dormir. Tinha sido um dia cheio de surpresas e coisas boas. Mal a Catarina deitou a cabeça na almofada adormeceu, de tão cansada que estava depois de passar o dia a correr, a brincar, a abrir prendas e a comer coisas boas. Mas passado pouco tempo e apesar do cansaço, começou a sentir frio e acordou. Os cobertores tinham levantado voo e esvoaçavam de um lado para o outro do quarto. Ela não achou piada nenhuma. Tinha sono e frio e queria dormir e por isso mal um dos cobertores passou perto dela, agarrou-o com força para o obrigar a voltar para a cama. Mas qual quê? O cobertor ganhou ainda mais velocidade e quando a Catarina deu fé voava também pelo quarto fora sem conseguir pôr os pés no chão até que, de repente, o cobertor pairou sobre a cama e caiu atirando com ela para o colchão.
- Cobertor, pára quieto! Quero dormir! – disse-lhe a Catarina muito séria a ver se ele se deixava de brincadeiras.
“Parabéns a você! Parabéns a você!…” Alguém cantava no quarto com uma voz linda, muito suave e alegre. Mas, estranhamente não se via ninguém. A Catarina, sentada no meio da cama, olhava de um lado para o outro a tentar perceber de onde vinha aquela vozinha, mas não via nada.
- Ei! Estou aqui em baixo, sentada no teu joelho, olha para mim! – gritou a vozinha.
Era uma linda fada, das que voam e são pequeninas, com um vestido azul comprido que esvoaçava quando ela voava e os cabelos loiros muito compridos.
- Catarina, sou a tua fada dos sonhos e hoje estou aqui por um motivo muito especial – disse ela com ar divertido.
- Uma fada! Que fixe!... Onde está a tua varinha de condão? – perguntou a Catarina intrigada.
- Isso já não se usa, miúda! Andas a ler contos de fadas muito antigos. Agora o que está na moda são os sopros de estrelas. Eu sopro na tua direcção e atiro-te com milhares de estrelinhas à cara para fazer cumprir os teus desejos – informou a fada.
- E posso pedir o que eu quiser!? – diz a Catarina a bater palmas de contente.
- Não! Nada disso! Hoje é um dia muito especial, fizeste seis anos. E todos os meninos, na noite em que fazem seis anos são visitados pela sua fada dos sonhos para escolherem um super poder.
- E posso escolher o que eu quiser?
- Não! Nada disso! Hoje vais experimentar cinco super poderes durante a noite e de manhã, antes de acordares, vais ter de escolher um que vai ficar contigo para sempre e fazer de ti uma menina muito especial – disse a fada enquanto batia as asinhas delicadas e puxava os cobertores para cima da Catarina para ela adormecer.
A fada dos sonhos soprou e atirou com milhares de estrelinhas para o ar. A Catarina fechou os olhos e começou a ver-se no recreio da escola a brincar com os amigos. A fada segredou-lhe ao ouvido que o primeiro super poder que ela ia experimentar era a super força. Ia ficar tão forte que podia levantar as árvores só com uma mão. Então, ao fundo, começaram uma zaragata. Um grupo de meninos começou a empurrar e a bater em outros meninos que brincavam sossegados. Era hora de a super Catarina entrar em acção. Atravessou o recreio a correr e quando chegou perto do grupo agarrou nos braços dos dois meninos mais fortes que estavam a bater nos outros e muito zangada começou a girar com eles à volta e atirou-os ao chão. Só que ela tinha mesmo muita força e não estava habituada por isso quando os largou, os infelizes meninos voaram para tão longe que quando caíram no chão partiram três costelas, dois dedos, quatro dentes e não paravam de chorar. Enquanto todos batiam palmas à Catarina por ela ter sido tão forte e corajosa e por os ter defendido ela correu para os dois miúdos e começou a chorar quando viu que os tinha magoado tanto.
Nessa altura chegou a fada dos sonhos, voltou a soprar-lhe estrelinhas e segredou-lhe ao ouvido que o segundo poder ia transformá-la na menina mais inteligente do mundo. A Catarina estava então na sala de aula e a professora, mais à frente, ensinava muitas coisas novas. Sempre que ela tentava ensinar algo novo, enquanto todos os meninos ficavam entusiasmados por aprender, a Catarina dizia logo “Eu sei, eu sei, posso ir mostrar como se faz?” e passado pouco tempo os colegas já não a suportavam. Ela sabia tudo, não os deixava aprender, mais ninguém falava na aula e a professora já não sabia o que lhe havia de fazer. No fim do dia, a própria Catarina estava muito triste. Os outros meninos já não gostavam dela e ela já não gostava da escola porque era aborrecido não haver nada para aprender, não haver nada de novo.
Então a fada dos sonhos chegou, soprou-lhe estrelas mais uma vez e disse-lhe que o terceiro super poder ia permitir-lhe voar. Desta vez, na praia, a Catarina feliz da vida abre os braços, corre e levanta voo. As pessoas que a viam nem queriam acreditar. Como era possível uma menina voar assim? Que maravilha! E ela ria e ganhava cada vez mais velocidade com os cabelos a esvoaçar ao vento e acenava para as pessoas que na praia a olhavam maravilhadas. Foi então que de repente sentiu uma bicada na testa, uma grande confusão de penas e se desequilibrou. Distraída, sem estar habituada a voar e sem conhecer as regras de trânsito dos pássaros tinha atropelado um grupo de gaivotas que iam sossegadas a caminho do seu rochedo no meio do mar. Com o acidente e a atrapalhação, ouviram-se muitos gritos, soltaram-se muitas penas e a Catarina caiu estatelada no areal.
A fada dos sonhos aparece de novo e diz-lhe que o super poder seguinte ia fazer dela a menina mais doce do mundo, pois tudo em que tocasse ficava doce. Na cozinha, o pai prepara-lhe uma linda torrada com azeite e sementes de mostarda, mesmo como ela gosta e quando a Catarina pega nela e mete à boca começa a torcer o nariz porque lhe sabia a chocolate. A seguir vem para a mesa um belo rolo de carne, mas mal o mete na boca fica a saber a caramelo. Tudo o que ela experimentava fica a saber a doces e pelo fim do jantar já estava enjoada.
Mais uma vez, e agora a última, a fada dos sonhos chega ao pé dela, sopra-lhe estrelas e segreda-lhe ao ouvido que o quinto super poder a vai transformar na menina mais rápida do mundo. A correr a Catarina é mais veloz do que ninguém. Na escola a professora dá inicio a uma corrida e a Catarina sai disparada, mal se vê e atravessa a meta toda contente. Depois senta-se à espera que os outros cheguem, o que só acontece muito tempo depois. Na praia, a brincar com outros meninos, acontece o mesmo, chega sempre muito mais depressa que os outros e depois fica sozinha à espera. Até entrou num concurso e fez a mesma corrida vinte vezes só para não ficar sozinha mas depois também se cansou de chegar à meta e voltar ao início, e chegar à meta e voltar ao início e chegar à meta e voltar ao início e acabou por ficar, como sempre, à espera dos outros e nem sequer estava feliz por ter ganho porque já sabia que ganhava sempre.
Então a fada dos sonhos voltou, fez-lhe cócegas no nariz para ela acordar e perguntou-lhe com que super poder queria ficar. A Catarina sentou-se na cama ensonada e começou a pensar em voz alta.
- A força, não quero. É muito perigoso e posso magoar os outros meninos. A inteligência também não pois não tem piada nenhuma saber tudo; é bom aprender. Voar também não quero. É muito bom mas o céu é para os pássaros e podem haver muitos acidentes. A doçura enjoa e eu gosto de todos os sabores, não quero passar a vida a comer coisas doces, tudo com sabor a chocolate, caramelo, chantily… não, quero os sabores todos. E também não quero a rapidez. É aborrecido saber que vamos ganhar as corridas todas e não gosto de ficar sozinha à espera de toda a gente.
- E então não vais querer nenhum super poder? – perguntou a fada dos sonhos muito intrigada.
- Não! – disse muito séria a Catarina – Não quero ter super poderes, pensava que era mais divertido.
- Então vais ter de descobrir os teus próprios super poderes, aqueles que nenhuma fada te pode dar e que mais ninguém tem – disse a fada a sorrir para ela.
- Mas eu tenho super poderes? – perguntou a Catarina.
- Claro que tens, muitos. Toda a gente tem super poderes. Só tens de os descobrir. Tens de confiar em ti e descobrir os super poderes que fazem de ti uma menina tão especial, diferente de todas as outras. Tens de descobrir a Super Catarina.
E então a fada bateu as asinhas novamente e puxou os cobertores, soprou mais estrelinhas e disse baixinho “Bons sonhos e feliz aniversário!”.

28/10/07

Conto de Fadas

Está uma noite mágica, ambígua, iluminada. A Lua sempre me fascinou. Mesmo quando a Lua era apenas a Lua e não resplandecia com memórias. Sou uma mulher lunar. Estou sentada na varanda, a beber gin e a fumar um cigarro. Estou sozinha e olho o mar à minha frente, por trás do casario que desce até ao porto, por trás dos mastros de barcos que atravessaram o Atlântico para repousar aqui. E por trás do mar iluminado, quase dourado está a montanha imensa. Não tem luz própria como as estrelas, não reflecte a luz como o mar e portanto nem o luar denuncia a sua presença imponente. Só eu sei que está lá, depois do casario, depois dos mastros dos barcos, depois do mar. Não é uma questão de fé. É que eu sei que a Lua é um astro extremamente selectivo, que nem tudo revela. Abraço as pernas e pouso a cabeça nos joelhos para recordar.
No local onde nasci, muito longe, do outro lado do mundo somos um pouco diferentes. Se alguém nascer durante o dia tem o dom de tudo ver. Pode ver com os olhos e com o coração. Pode ver a alma das pessoas também. Mas se alguém nascer durante a noite, é um ser mais frágil e delicado e tem o dom de se tornar invisível sempre que se sente em perigo, para se proteger. O local onde eu nasci é uma pequena ilha perdida no mar. Não sei porque motivo somos diferentes de todas as outras pessoas. Há lendas e mitos sobre a nossa Criação, é certo, mas nenhuma explicação verdadeiramente satisfatória. Levamos uma vida simples e tranquila. Vivemos da comunhão com o mar. É do mar que retiramos alimentos, energia, medicamentos, histórias. É de mar que fazemos as nossas estradas para encontrar outros povos com quem convivemos e fazemos transacções. É no mar que encontramos satisfação, quando o contemplamos, quando mergulhamos, quando cheiramos a maresia. Raramente saímos da nossa ilha, sobretudo as pessoas lunares que são mais frágeis e delicadas e sofrem mais com as doenças do mundo.
Um dia, acabava de sair da água depois do meu mergulho matinal quando uma nuvem branca poisou na praia à minha frente envolvendo tudo num abraço de neblina que não me permitia ver as minhas próprias mãos. Sentei-me no areal à espera que o sol voltasse. E então vi-o claramente a caminhar na minha direcção. Era um rapazinho espevitado de uns sete anos, com um andar muito seguro de si e um olhar doce e sábio impróprio para a idade dele.
“Quem és tu? Andas perdido?” perguntei eu curiosa.
“Não, acabei de encontrar o que queria. Vim propositadamente à tua procura, Luana” respondeu ele muito sério.
“À minha procura?! Porquê?” continuei, sem perceber nada do que se estava a passar.
“ Sou o teu Guardião. Queres muito sair para o mundo exterior, conhecer o que há para lá da ilha, conhecer as outras pessoas, mas não podes ir sozinha. Eu vou contigo” disse o rapaz com autoridade.
“Mas eu posso proteger-me, fico invisível, nada me poderá fazer mal. Não é um miúdo como tu que me vai ajudar, pelo contrário ainda me vais atrapalhar mais e tenho eu de tomar conta de ti” respondi já cansada daquela conversa.
Foi então que a neblina se tornou mais púrpura e num ápice o rapazinho deu lugar a uma bela jovem de cabelos negros e sorriso delicado.
“Luana, já devias saber que tudo tem muitas formas e muitas faces. Eu posso ser o que eu quiser” disse ela num tom provocador, quando o púrpura deu lugar ao rosa e a jovem se transformou num ancião de cabelos muito brancos e o rosto sulcado por rugas.
“Eu sou um Guardião. Não somos um mito nem seres encantados. Somos tão diferentes de vocês aqui na ilha, como vocês de todas as pessoas do mundo exterior e a nossa missão é proteger-vos, sobretudo a vocês lunares quando querem aventurar-se para lá do mar. É muito fácil esquecer quem são lá fora. A minha missão é zelar para que isso não aconteça” afirmou ele com determinação e ternura na voz.

Quando cheguei ao mundo exterior fiquei fascinada com tudo. Vivia em sobressalto, é certo, e durante os primeiros meses acho que quase ninguém me viu. Tinha medo dos automóveis, dos barulhos, da forma de falar mais brusca das pessoas, dos animais que nunca tinha visto, dos objectos desconhecidos. Tinha medo de tudo mas por outro lado vivia fascinada com as descobertas intermináveis, com os novos mundos, pessoas, formas de estar que desfilavam na minha frente. Pouco a pouco fui-me habituando ao mundo exterior e perdi o medo e deixei de me tornar invisível e estava feliz.
Um dia ao entardecer, enquanto lia tranquilamente num banco em frente ao mar senti que alguém se aproximava e se sentava ao meu lado.
“Que livro maravilhoso é esse que desvia o teu olhar do sol a adormecer?” perguntou-me o homem que acabara de chegar. Sorria para mim e tinha um ar intrigado como se quisesse realmente uma resposta para aquela pergunta.
“Estou à espera da Lua, que está quase a chegar” respondi eu muito séria.
“Olha” disse ele a apontar para o céu, “Já chegou, está ali, vê”.
Fechei o livro e sorri também. Falamos do Sol e da Lua, dos lugares por onde tínhamos passado, de coisas banais, de coisas que nos tinham acontecido, de tudo e de nada. Quando dei conta a Lua já estava alta, majestosa a iluminar o mar e o mundo à nossa volta. Ele tinha acabado de chegar àquele lugar. Vinha para trabalhar ali e quem sabe ficar, ou talvez voltar a partir. Durante muitos dias, muito tempo, continuamos a encontrar-nos. Perdíamos a noção das horas. Sentíamo-nos bem só por estarmos juntos e éramos felizes.
Uma noite aproximei-me dele em silêncio. O luar iluminava-lhe o rosto afável e os olhos ternos. Parei. Olhei novamente, com mais atenção. Parecia-me diferente, algo nele deixara de me ser familiar. Observei atentamente o perfil do rosto, a estrutura óssea equilibrada, a curvatura dos ombros os gestos delicados com que acariciava os braços para se aquecer do frio que a noite trouxera. E de repente o meu coração explodiu, acelerou como se estivesse a falar muito depressa, a dizer muitas coisas ao mesmo tempo. As minhas pernas ficaram paralisadas, incapazes de andar e as ideias, dentro da minha cabeça giravam num turbilhão doentio. Usei de todas as minhas forças para me arrastar até àquele banco e sentar-me ao lado dele. Aproximei-me para o beijar e o meu corpo incendiou-se de sensações desconhecidas. Tentei cumprimenta-lo timidamente. Ele não me respondeu. Continuou a olhar o mar e a tentar em vão aquecer os braços. Toquei-lhe no ombro a tremer e ele não reagiu. Levantei-me, coloquei-me diante dele e ele continuava a olhar para o mar através de mim, como se eu fosse invisível.
Voltei àquele lugar todos os dias. Tentei deixar de temer o amor que crescia dentro de mim. Amaldiçoei a Lua, o mar e a ilha. Entristeci. Voltei a todos os lugares onde nos encontrávamos até ele se conformar com a minha ausência e partir.

Em noites como hoje, de Lua cheia, de magia, não consigo deixar de pensar nele. Estou abraçada às pernas com a cabeça pousada nos joelhos a relembrar os momentos felizes que vivemos juntos.
“Luana anda comigo” disse uma gaivota que pousou na minha varanda.
“Estou a ficar louca… estou a ouvir vozes…” pensei eu confusa, quando a luz da Lua iluminou a minha varanda de tal maneira que me obrigou a fechar os olhos.
“Já nem te lembras de mim!” disse-me um rapazinho espevitado, muito seguro de si, parado à minha frente. “Sou eu, o teu Guardião, anda comigo”, insistiu.
“Mas para onde me queres levar?” perguntei eu curiosa.
“Vamos para casa, Luana, já não és feliz. Já viste o mundo, já aprendeste muito, já tiveste o que querias” respondeu o rapaz enquanto me puxava pela mão.
“Não, Guardião, a única coisa que eu verdadeiramente quero é o amor dele e perdi-o porque tenho medo, porque sou uma cobarde” disse-lhe eu com lágrimas nos olhos e a alma dilacerada.
“Não é verdade! Tu és como aquela montanha por trás do casario, por trás dos mastros dos barcos, por trás do mar. És poderosa e surpreendente mas também frágil e delicada como se estivesses à deriva no mar. E da mesma forma que tu sabes que a montanha está ali, mesmo quando a noite esconde a sua presença, também tu precisas que alguém consiga ver a tua alma para saber onde estás mesmo quando estás invisível”.
“Mas eu quero deixar de ser invisível. Quero que ele me consiga ver. Não quero mais ninguém, não percebes?” gritei-lhe.
“Ninguém pode ser o que não é! Tu és diferente e só vais ser feliz com um igual” insistiu o Guardião enquanto me agarrava com força a mão e me puxava.
Fechei os olhos e vi a ilha, o meu mar tranquilo, as pessoas que me amam e comecei a sentir-me flutuar, a sentir-me mais leve até voltar a sentir terra firme debaixo dos pés. Abri os olhos e vi a minha praia, a minha casa e senti-me bem.

- É um privilégio recebe-lo na nossa ilha – disse Solaris ao homem que ajudava a desembarcar.
- O privilégio é meu. Há muito que queria aprender a vossa tecnologia de gestão de recursos hídricos. Pelo que sei, a ilha é energeticamente auto-suficiente recorrendo exclusivamente ao mar – disse o homem entusiasmado.
- Já sabe que a nossa única condição é manter o mistério sobre a nossa existência. Ninguém pode saber as nossas coordenadas.
- Eu sou um homem de palavra e vou cumprir o prometido – disse o homem com confiança.
- Eu sei, garanto-lhe que sei. Não está em si agir de outra forma – respondeu Solaris a sorrir.
- Mas vamos, depois trazemos as suas coisas, a minha casa é já ali ao fundo e você deve querer descansar um pouco.
Avançaram pelo passeio junto ao mar, bordejado de árvores frondosas e flores coloridas e de repente Solaris viu um rapazinho com ar espevitado sair a correr do meio do casario e parar com ar traquina atrás de um banco de jardim onde uma mulher lia serenamente.
“Um Guardião?! Que estranho… que andará aqui a fazer?” pensou ele intrigado. Entretanto continuou a conversar com o estrangeiro mas de repente este ficou para trás, parado no meio do passeio a olhar fixamente a mulher que lia. Solaris olhou para ele, para o Guardião, que o estrangeiro não via, novamente para ele e sorrindo começou a afastar-se ligeiramente.
O homem aproximou-se silenciosamente e sentou-se junto a Luana. Atrás o Guardião dançava e rodopiava sem parar de rir, enquanto Solaris observava atentamente a cena.
- Que livro maravilhoso é esse que desvia o teu olhar do sol a adormecer? - perguntou o homem que acabara de chegar.
Luana pousa o livro nos joelhos com as mãos trémulas e olha devagar para ele, mas quando os olhares de ambos se cruzam ela desaparece. O homem fica perplexo a olhar o banco vazio sem saber o que pensar. Solaris aproxima-se coloca-lhe a mão no ombro, sentam-se e começam a conversar.
- Meu amigo, há muitas coisas sobre a ilha que você desconhece… - começa ele.
Atrás do banco o rapazinho com ar espevitado dá pulos de felicidade e não pára de dançar.

02/10/07

A árvore da vida


Quando o correio chegou, vivia-se uma manhã ordinária, sem grande agitação no hospital. Longe da azáfama e do caos dos hospitais públicos, aqui o ambiente era tranquilo, desinfectado e silencioso. Na recepção imponente coberta de mármore e obras de arte, o carteiro tinha por hábito não só entregar, mas também ajudar a recepcionista a separar a correspondência em pequenos montes que se espalhavam pelo balcão, na esperança de lhe conquistar um sorriso que funcionava como uma espécie de barómetro para prever o curso desse dia. Se, por acaso ela lhe sorria, ele iluminava-se e sentia-se o homem mais feliz do mundo. Acreditava que o dia só lhe poderia correr bem, cantava, espalhava o bom humor que lhe sobejava e à noite, quando deitava a cabeça na almofada fechava olhos e sonhava que a abraçava, que ela se encolhia nos seus braços e lhe devolvia um sorriso ainda mais doce. Habitualmente ela mal retirava os olhos da correspondência para olhar para ele e os seus gestos, mecânicos, na ânsia de organizar o balcão e alinhar os montes de correspondência a distribuir, raramente incluíam sorrisos. Um seco “Obrigada, Sr. Martins. Até amanhã.” colocava um ponto final naquela colaboração quotidiana e ele saía cabisbaixo depois de a ver desaparecer no corredor com dezenas de cartas nos braços, com a certeza de que ia ter um dia triste, azarado, solitário.

- Bom dia Sr. doutor, tem aqui a sua correspondência – disse ela e saiu do consultório irritada, como sempre, com a falta de cortesia do director, um homem mal-humorado, seco, que a ignorava diariamente e nem sequer a cumprimentava.
Afonso Soares afastou-se da janela, pegou na sua chávena de café, já quase frio e sentou-se na secretária. Olhou surpreendido para o monte de cartas na sua frente, como se elas se tivessem materializado naquele momento e depois reparou numa caixa que estava mesmo ao lado. Abriu-a com curiosidade. Não tinha remetente, nem carimbo dos correios, parecia ter sido entregue pessoalmente. Lá dentro, um pequeno bonsai ansiava por luz e quando o colocou em cima da mesa, na sua frente, encostou-se lentamente na cadeira e ficou a mirá-lo. Era um imbondeiro, uma árvore extraordinária que quando adulta pode atingir os vinte metros de altura e dez de diâmetro, a árvore da vida, um dos símbolos de África. Vê-la em miniatura, ali na sua frente, tantos anos depois de ter olhado uma pela última vez, pareceu-lhe estranho, irreal. Voltou a pegar na caixa à procura de mais qualquer coisa que lhe explicasse aquela encomenda estranha. Encontrou um pequeno cartão, escrito à mão, com caligrafia delicada, onde podia ler-se apenas “Obrigada”. Intrigado, franziu a testa, voltou a remexer na caixa, virou o cartão mas não encontrou mais nenhuma pista.
Entretanto entra repentinamente no consultório o seu sócio.
- Afonso, aquele investimento que fizemos na nova ala… - começou ele a dizer exaltado.
- Sabes que árvore é esta, Raul? – pergunta-lhe sem tirar os olhos do bonsai.
- Mas... que raio…sei lá! Não é uma daquelas árvores japonesas!? Mas o que é que isso interessa? Afonso, estamos com problemas sérios para resolver, porque raio estás aí a olhar para um vaso?
- É um imbondeiro Raul. Uma miniatura de um imbondeiro, a árvore da vida. Uma árvore sagrada em muitos lugares de África, que muitos acreditam facilitar a comunicação entre os vivos e os mortos. Ninguém sabe a idade dos imbondeiros. Ao contrário das outras árvores elas crescem ocas e não formam os anéis que nos permitem detectar a sua idade…
- Muito bem! Eu aqui cheio de problemas para resolver e tu a dares aulas de botânica. Estou a perceber… fez-te recordar o grande aventureiro Afonso Soares. Olha, eu não sei como essa porcaria veio aqui parar, mas é bom que te lembres que o grande aventureiro perdeu um pé por causa de uma mina e quase ia perdendo a vida, passou dois anos em coma e quando finalmente acordou resolveu ser um tipo responsável, abriu este hospital comigo e deixou para trás o grande viajante, aventureiro, salvador do mundo. Bolas Afonso! Estamos cheios de dívidas. Preciso da tua ajuda para resolver uma série de coisas e tu nem me ouves!
- Deixa-me sozinho alguns minutos. Só alguns minutos. Eu já vou ter contigo. Prometo – disse Afonso sem tirar os olhos do imbondeiro.
Raul deu meia volta e saiu furioso do consultório batendo com a porta. Entretanto, o telefone começou a tocar.
- Sr. doutor, é a sua esposa. Diz que não tem o telemóvel ligado e ela precisa fala urgentemente consigo – diz a recepcionista do outro lado da linha.
- Diga-lhe que estou numa reunião. Não quero falar com ela agora – disse Afonso indiferente.
- Mas… Sr. doutor, a sua esposa diz que é por causa do seu filho. Está muito aflita! – Insistiu ela mais uma vez.
- Passe a chamada – retorquiu, seco.
- Afonso, meu Deus, não consigo falar contigo e estou desesperada. O Filipe teve uma crise qualquer na escola, perdeu a cabeça, partiu tudo, partiu a sala de aula toda, agrediu colegas e professores e levaram-no para um hospital psiquiátrico porque estava incontrolável. Eu não sei o que fazer. Preciso de ti – disse ela desesperada, a chorar.
- Controla-te que assim não resolves nada. Já vou ter contigo – respondeu enervado.
Há dois dias que não ia a casa. Ia ficando pelo hospital e quando dava conta verificava que já era muito mais que um negócio, um trabalho, tinha-se transformado numa espécie de refúgio também.


Muito longe dali, da cidade, do burburinho das pessoas, da poluição e dos carros, numa pequena praia do Indico, destaca-se na paisagem uma pequena casa caiada rodeada por um jardim de cortar a respiração. Um verdadeiro jardim do Éden, repleto de árvores, flores e todo o tipo de plantas. No alpendre, voltado para o mar, uma mulher dorme tranquilamente embalada por uma cama de rede. É jovem ainda, não terá mais de quarenta anos, mas tem um ar doente e macilento como se a vida estivesse aos poucos a despedir-se dela.
- Isabel, acorde… vamos lá, que está na hora do remédio – disse suavemente uma mulher enquanto lhe tocava no ombro.
- Tive um sonho bonito – respondeu ela a sorrir enquanto se espreguiçava. – Onde estão as crianças? Já voltaram da escola?
- Sim senhora. Eu mesma fui buscá-los depois de arrumar a cozinha e agora a Dila foi com eles na praia – disse-lhe enquanto ajudava Isabel a erguer-se para tomar o medicamento.
- E o meu amor, Dosinda? Na estufa, como é costume? – perguntou a sorrir entre duas colheres de xarope.
- Sim e já veio espreitá-la várias vezes mas voltou. Está a fazer a poda dos bonsais.
- Estás a ver. Está tudo perfeito para a minha partida, preciso só de falar com o Velho Tembe. Pedes-lhe para vir aqui, por favor?
- Claro Isabel. Mas não gosto quando você fala assim. Você ainda vai curar. Tem de lutar pela vida – respondeu a mulher com lágrimas nos olhos.
- Minha querida Dosinda, já falamos sobre isso. Eu tenho um tumor maligno incurável e não quero passar os dias que me restam enfiada num hospital a ser retalhada a cada nova cirurgia só para prolongar um pouco a vida, longe de tudo e todos que amo. Eu tive uma boa vida. Quero ter uma boa morte também. As ervas e xaropes do Velho Tembe ajudam-me a suportar a dor e a ter ânimo. Mas vai lá chamá-lo, por favor, preciso que ele me ajude a fazer só mais uma coisa.


Afonso entrou no consultório ainda de madrugada. Não conseguia dormir e resolvera ir trabalhar. O filho já estava em casa, sob forte medicação e com um diagnóstico preocupante. Uma criança de dez anos, incapaz de controlar a agressividade e a raiva; incapaz de comunicar. Ele cruzou os braços sobre a secretária, pousou a cabeça e começou a chorar infeliz, impotente.
De repente sentiu que algo lhe rodeava os tornozelos, as pernas e que o ia aprisionando. Abriu os olhos e aterrorizado viu na penumbra a sombra de um imbondeiro que se agigantava dentro daquela sala e cujas raízes o prendiam e invadiam. De repente sentiu-se arrancado à cadeira onde estava sentado e em pânico, enquanto se contorcia viu-se ser levantado no ar e atirado para dentro da árvore gigante. Caiu num chão de terra vermelha, sentiu um calor pesado e mal conseguia abrir os olhos com tanta luz. Ouvia um tiroteio intenso que se aproximava cada vez mais, sentia uma agitação brutal à volta dele, o pó a invadir-lhe os pulmões e quando se levantou e olhou em volta encarou um cenário terrível de gente já quase sem vida, esqueléticos, doentes, que corriam para se esconder no mato e fugir ao tiroteio que os perseguia. Afonso ficou parado, paralisado, a olhar. Já tinha estado ali. Já tinha vivido aquilo… tudo aquilo que ele queria esquecer. De repente viu soldados a aproximarem-se, a disparar e algumas pessoas a começar a cair por terra. Viu uma mãe ser atingida na cabeça e lutar por cair de joelhos e depois para a frente para não esmagar o filho que trazia nas costas, preso numa capulana e então viu um homem que saiu como um felino enfurecido do meio do mato e começou a correr contra a corrente, na direcção dos soldados até ficar ao alcance das balas que choviam à sua volta, só para soltar aquele bebé das costas da mãe e salvá-lo. Afonso continuou parado no meio daquele cenário aterrorizador, perplexo, a ver-se a si próprio, há quinze anos atrás, a reviver outra vida. Confuso e perturbado Afonso vê-se então a si próprio a correr como um louco com uma criança nos braços na sua direcção e quando este corre através de si como se ele não estivesse lá, como se não existisse, Afonso sente numa explosão sensorial todas as emoções daquele homem que corre com uma criança nos braços e tenta fechar os olhos e tapar os ouvidos para sair daquele lugar.
Então deixa de ouvir o ruído das balas, as pessoas a correr, os gritos e abre lentamente os olhos. Está deitado sobre a secretária. O dia já nasceu e os primeiros raios de sol invadem o consultório. Afonso coloca as mãos na cabeça e encosta-se para trás na cadeira ainda com o coração acelerado. À sua frente está o pequeno imbondeiro com um cartão encostado ao tronco. Ele olha-o com estranheza. Jurava que o bonsai tinha vindo apenas com um cartão a dizer “obrigada”. E agora ali estava outro, com a mesma caligrafia, onde podia ler-se “coragem”.

- Isabel, você sabe que isto vai precisar de muita energia sua, que você não tem porque a vida está lhe abandonando – disse o Velho Tembe preocupado.
- Preciso fazer isto antes de partir. Devo a um homem tudo aquilo que sou e tudo aquilo que tenho. Tudo aquilo que me permitiu ser feliz e despedir-me da vida sem ressentimentos eu ganhei de um homem com quem passei uma noite, uma única noite na vida e do qual me afastei sem sequer me despedir.
- E não chega teres-lhe enviado um bonsai e um cartão a agradecer? – perguntou o homem que entretanto se aproximou deles.
- Meu amor, estás com ciúmes – disse Isabel a sorrir. – Mas não devias. Eu sinto obrigação de fazer isto pelo tanto que ele me deu. Eu estava perdida quando o conheci, destroçada, no meio de uma guerra que eu já nem conseguia descrever.
- Isabel, partilha com ele essa história, conta tudo para ele entender o que você quer fazer, minha filha e te ajudar também – disse o Velho Tembe, sábio como sempre.
- Eu vou continuar nossas combinações e depois volto para te ver – despediu-se o Velho enquanto se afastava.
- Queres ouvir, então? – perguntou-lhe Isabel enquanto lhe acariciava o rosto.
- Claro, se é importante para ti, se queres voltar a esses lugares da tua memória… - respondeu ele.
- Aqueles foram os piores tempos da guerra em Angola. Estávamos em 93 o Huambo foi cercado pela Unita durante 56 dias e ocupado em Março. Meses depois a cidade foi bombardeada pelas forças governamentais, que a conquistaram. Não é difícil imaginar o que foram esses meses. Toda a loucura da guerra, tudo o que de pior existe nos seres humanos à solta, descontrolado. Eu era uma miúda que queria ser jornalista, mas acho que tinha ido para lá porque queria morrer. Foi uma fase muito amarga para mim, muito dura. Fui para o epicentro da guerra como repórter free lancer. Vi tudo o que não se deve jamais ver. Um dia estava a caminho de um campo de refugiados quando o jipe que seguia à frente do meu foi atingido por uma mina. As viaturas ficaram destruídas e os que sobrevivemos tínhamos que seguir a pé até ao campo. Dois dias depois, esfomeados, feridos, desorientados começamos a ouvir tiros de metralhadora e percebemos que havia uma aldeia à frente que estava a ser atacada. Quando voltou o silêncio aproximamo-nos. Já não se viam soldados. De repente ouvi um choro de criança, olhei para o lado e vi uma mulher, que mais parecia um fantasma de si própria, pegar num bebé e coloca-lo ao peito para lhe dar de mamar. Lembro-me que me apeteceu muito chorar quando vi aquela cena mas depois… depois, saído do nada vejo um homem enlouquecido, que pegou na criança e a arrancou ao seio da mãe e que se atirou àquela mulher, agarrando-lhe os seios, subjugando-a com o peso do seu corpo. Julguei que ia assistir a mais uma de tantas violações da guerra. Olhei para a criança que no chão não parava de chorar, olhei para o soldado morto ao meu lado, retirei-lhe a arma da mão, aproximei-me deles e disparei sobre o homem com raiva. Quando o homem tombou percebi que lhe corria leite pelos cantos da boca. A mulher olhou para mim assustada, pegou na criança e fugiu a correr. Não tinha sido uma tentativa de violação, o homem estava esfomeado e do corpo daquela mulher tomou-lhe apenas o leite. Deixei cair a arma, gritei desesperada, cai de joelhos no chão e então começou a chover e eu fiquei ali, no meio da lama, não sei por quanto tempo, vazia.
Foi então que conheci o Afonso. Era médico no campo de refugiados, que afinal era perto da aldeia atacada e tinham ouvido o ataque e vindo ver se havia sobreviventes que pudessem ajudar. Era contra todas as normas de segurança, mas ele não se importava. Encontrou-me no mesmo local onde cai no meio da lama. Não tinha mais do que uns arranhões no corpo e estava suja e encharcada mas tinha a alma ferida de morte. Quando anoiteceu, depois de ter tratado dos doentes mais graves, veio ver-me. Eu não falava. Aqueceu água, despiu-me, lavou-me, deu-me alguma roupa confortável e limpa, fez-me café, olhou bem dentro dos meus olhos, abraçou-me com ternura, deu-me a mão e arrastou-me para fora da tenda, para fora do campo. Lembro-me que estava uma noite escura e de repente surge na minha frente um imbondeiro enorme a assombrar a noite. O Afonso estendeu uma capulana no chão, sentou-se e disse-me muito sério que já sabia diagnosticar a minha doença. Segundo ele sofria de “Pesada Escuridão”, ou seja andava há tempo de mais a ver cenas de terror, infelicidade, tristeza, violência e precisava apenas de ver outras tantas coisas belas, alegres que me tocassem a alma. Lembro-me de olhar para ele e achar que era louco, que não havia ninguém saudável naquele lugar. Então ele disse-me que tinha a mesma doença que eu em estado crónico e que a única maneira de a tratar era estar atento à humanidade que florescia até nos momentos piores ou então ir até ao imbondeiro, deitar-se a olhar as estrelas. Aquele imbondeiro já tinha vivido tanto, tantas coisas boas e más que lhe dava uma sensação de conforto indescritível. Dava-lhe a certeza de tudo ser passageiro menos aquela árvore. E depois a visão das estrelas na escuridão reforçavam ainda mais aquele conforto… havia luz, algures, mesmo que ali se vivesse na escuridão mais profunda. A determinada altura dei-lhe a mão, acariciei-lhe o rosto e beijei-o. Abraçamo-nos com doçura e fizemos amor como quem quer dar vida ao outro. Quando acordei, nos braços dele ao amanhecer, sabia que não podia ficar ali. Estava frágil, era muito fácil ficar encantada por aquele homem terno. Sabia que tinha de encontrar o meu caminho sozinha. Sabia, a partir daquele dia, que há sempre luz até na noite mais escura e que mesmo no meio da loucura, da maior desumanidade é possível encontrar amor, ternura, beleza. Deixei-o enquanto dormia e chegada ao campo apanhei boleia de uma coluna humanitária da Cruz Vermelha que saia do Huambo.
- E o que queres fazer, Isabel? Eu ajudo-te mas não quero que te prejudiques. Isso Não! – disse-lhe com carinho.
- Meu amor, eu preciso apenas que sejas forte, que entendas o que está acontecer. Não lamentes ter menos tempo do que gostarias comigo. Pensa apenas, na enorme felicidade que foi termos tido a oportunidade de partilhar o mesmo tempo e o mesmo espaço neste universo imenso.

- Bom dia, Sr. doutor, a sua correspondência – disse-lhe a recepcionista e ia já a sair do consultório sem esperar resposta quando Afonso a chamou.
- Joana, leve-me este bonsai daqui para fora. Leve-o para a recepção, para sua casa, deite ao lixo mas não quero voltar a vê-lo – disse-lhe num tom decidido.
- Está a falar desta plantinha na sua secretária? – perguntou ela apontando, a medo.
- Vê aqui mais algum bonsai!? Tire-me isso da frente e desapareça também… já! – gritou.
“Grosso! Mal educado!” pensou ela enquanto pegava na planta e saia quase a correr do consultório.
Era uma planta esquisita, pensou a Joana, mas era pequenina e ali, naquela recepção enorme ia ficar deslocada. Resolveu levá-la para casa. Arranjou um cantinho simpático para a acomodar, ao lado do sofá e instalou-se, sozinha como todas as noites, a ver televisão. Estava quase a dormitar, a ganhar coragem para se levantar e ir para a cama, quando sentiu a luz a falhar e se viu rodeada por escuridão. De repente viu uma sombra enorme a crescer à sua volta e um barulho ensurdecedor de coisas a partir, a cair ao chão. Começou a tremer de medo e agarrou-se à cabeça aos gritos quando o vidro da janela em frente se partiu em mil estilhaços e o vento entrou com violência na sala arrastando-a do sofá. Então viu as raízes de uma árvore enorme que lhe tomara a casa rodearem-lhe a cintura e a atirarem-na pela janela fora. Joana caiu aterrorizada numa superfície confortável e fofa. Olhou em volta e viu que estava numa cama, completamente encolhida, agarrada aos joelhos e que estava a ser abraçada por um homem. Voltou-se suavemente, ainda com receio e viu o carteiro. Viu-o a dormir sereno, tranquilo, com um sorriso nos lábios e sentiu-se bem naquele abraço.

- Afonso está alguém a tocar desenfreadamente à companhia, vais lá tu ver o que se passa? – perguntou-lhe a mulher ensonada.
- A esta hora? Já não se pode dormir sossegado? – resmungou enquanto se levantava e descia as escadas.
- Joana!? Mas o que é que se passa? Você está maluca? Já viu as horas?
- O Sr. doutor desculpe, mas esta planta é para si. Eu acho que ela está embruxada. Aconteceram coisas muito estranhas lá em casa… eu levei-a para casa, sabe?... enfim, coisas muito estranhas e depois… depois eu vi isto encostado à planta – e mostrou-lhe um pequeno bilhete onde podia ler-se numa caligrafia que já lhe era familiar “Afonso” – e juro que não sei de onde isso apareceu. Olhe, Sr. doutor essa planta é para si, está escrito, eu não a quero lá em casa. Tenha uma boa noite – e virou costas deixando Afonso perplexo a olhar o bonsai.
Levou-o para a sala, sentou-se a olhar para o imbondeiro em miniatura e começou a abanar a cabeça de incredulidade. Foi então que num ápice o imbondeiro se agigantou e o devorou novamente. Afonso voltou a cair na terra vermelha e então uma mulher deu-lhe a mão e arrastou-o por um caminho. Ele não conseguia ver-lhe o rosto e olhava em volta na expectativa de estar ver um cenário familiar, de se ver novamente a si próprio quinze anos atrás. Quando deu conta, era noite escura e aquela mulher continuou a arrastá-lo até chegarem a um imbondeiro, onde se deitaram a ver as estrelas.
- O que é que isto significa? Porque é que eu estou aqui? – perguntou confuso.
- Tens uma doença crónica, lembras-te? Pesada Escuridão. E há muito tempo que não tomas a medicação – disse-lhe Isabel a sorrir enquanto o olhava nos olhos.
- Eu lembro-me de vir a este lugar, para descansar, para me afastar do trabalho…
- Tu vinhas a este lugar para voltar a ter esperança, para acreditares que tudo faria algum sentido. Mas estiveste muito tempo em coma, sem ver as estrelas e esqueceste-te de voltar a procurar o teu sentido da vida.
- Agora lembro-me de ti… desapareceste, nunca soube sequer o teu nome – respondeu Afonso.
- Nessa noite salvaste-me mas eu tinha de partir sozinha, como fiz. Foi brusco talvez, mas não conseguiria faze-lo de outra maneira.
- O bonsai… foste tu? – perguntou Afonso curioso.
- Fui. Queria despedir-me de ti e agradecer-te. Sonhei contigo neste lugar numa noite de tempestade e sem o imbondeiro e senti que onde estivesses precisavas de recordar quem eras. Agora estou a ficar muito cansada. Tenho de ir. Fica aqui mais algum tempo, o tempo que precisares a olhar as estrelas e quando voltares a ver o bonsai lembra-te de mim.
Ela beijou-o na testa, levantou-se e desapareceu na noite escura. Afonso deitou-se novamente e sentiu regressar uma serenidade que o tinha abandonado há anos.

O quarto estava iluminado por dezenas de velas e cheio de flores. Parecia um jardim. O Velho Tembe, segurava numa das mãos de Isabel e cantava uma canção que parecia de embalar. O marido segurava-lhe na outra mão e acariciava-lhe os cabelos. À volta da cama as crianças, a Dila e a Dosinda rezavam em silêncio.
- Ela já partiu e conseguiu fazer tudo o que precisava antes de ir embora – disse o Velho Tembe com um sorriso sereno.

Muito longe dali, Afonso acordou no sofá quando o dia amanhecia. Lembrava confuso todas as emoções e acontecimentos dessa noite, sem perceber se tinha sonhado, se tinha sido real, quando olhou para o imbondeiro e viu o bonsai completamente florido e um bilhete encostado ao tronco. “As flores do imbondeiro, como a vida”. Afonso sorriu, sentiu-se iluminado.

18/09/07

Africa Hilton

Quem me abriu a porta foi uma mulher pequenina, idosa de muitos anos mas com corpo de criança frágil disfarçado pelo hábito cinzento, austero, de religiosa. Eu, esgotada por onze horas de voo, desgrenhada pela electricidade estática, corada e a ferver com o calor dos trópicos e com uma mochila imensa nas costas devia parecer uma criatura dos infernos e além do mais estava aterrorizada com a ideia de uma estadia no convento o que me alterava inconscientemente o humor e a simpatia.
Apresentei-me de forma seca e quase inaudível e ambicionei secretamente um banho e uma cama como se o mundo acabasse a qualquer momento e eu quisesse morrer limpinha e serena.
- Bem-vinda minha filha! Estamos todas à tua espera. Fizemos um almoço especial para te receber. Deixa-me tirar-te essa mala das costas… - disse a irmã Doroteia numa explosão de energia.
Fiquei paralisada a ver aquele corpo franzininho agarrado à minha mochila, que era quase do seu tamanho, e que me guiava por um labirinto de corredores sem parar de falar um segundo. Arrastei-me atrás dela sem abrir a boca. Vi-a pousar as minhas coisas num quartinho pequeno e cinzento que me pareceu não ter mais do que um crucifixo aterrador na parede. Depois apresentou-me as instalações sanitárias que se resumiam a um chuveiro por cima de um ralo no chão, um lavatório e uma sanita, tudo imaculado, mas onde não pude deixar de reparar num relance, na infindável fila de insecticidas exposta no parapeito da janela: para baratas, formigas, aranhas… fiquei intrigada. Logo a seguir arrastou-me pelo pátio interior, rodeado de muros altos, de onde não se via senão o céu e depois de passarmos por um grupo de raparigas que faziam tranças umas às outras e que abafavam o riso à minha passagem abriu-se à minha frente uma porta, atrás da qual dezenas de mulheres distribuídas por quatro mesas enormes, em pé, começaram a bater palmas, a cantar e a dançar à minha frente.
- É uma canção de boas vindas… - sussurrou a irmã Doroteia ao meu ouvido imediatamente antes de apanhar o ritmo da música e integrar o coro.
Fiquei parada no meio da sala de jantar enorme sem saber o que fazer. Olhei em volta e curiosamente só mais duas mulheres usavam o hábito cinzento das religiosas. Todas as outras usavam coisas diferentes o que dava um colorido surpreendente àquela dança sincronizada. Havia mulheres vestidas com belíssimos saris indianos, com capulanas vibrantes e turbantes africanos, com calças de ganga, com t-shirts e a cena parecia tão surrealista que por momentos julguei que sonhava, ainda durante o voo e que ia acordar a qualquer momento. Acordei destes pensamentos com um intenso aplauso, rodeada de sorrisos e fui imediatamente agarrada por uma mulher que me abraçou intensamente e disse que éramos xarás, como se estivéssemos ligadas por um qualquer laço que eu desconhecia.
- Meu nome também é Lúcia como seu, como a Irmã de Fátima. Temos o mesmo nome, somos todas xarás – diz ela eufórica, com sotaque brasileiro, enquanto me abraçava.
Fiquei aterrorizada com a ideia de ter alguma a coisa a ver com os três pastorinhos, de ter uma ligação mística qualquer ao milagre de Fátima. Acalmei-me quando racionalizei a origem do meu nome. A minha mãe sempre me contara que ao contrário de todas as convenções que me atribuiriam o nome da minha madrinha, Marlene, ela sempre insistira em me chamar Lúcia em homenagem a uma heroína da rádio novela que por alturas do meu nascimento arrebatava as audiências. Comecei a sentir-me mais calma, afinal o meu nome tem origem na cultura pop e não na cultura eclesiástica e tudo o resto é mera coincidência.
Quando acabou a sessão de abraços, cumprimentos e apresentações, indicam-me o meu lugar na mesa e eu cansada e atordoada de emoções, sento-me prontamente e preparo-me para colocar o guardanapo no colo quando vejo num movimento colectivo todas as mulheres a benzerem-se de pé, a inclinarem a cabeça para o peito, a fecharem os olhos e a recitarem em coro uma oração desconhecida. Levanto-me num ápice, coloco as mãos nas costas da cadeira, inclino a cabeça num gesto de respeito e fico atenta a espreitar pelo canto do olho, aguardando o fim do ritual.
O almoço especial era composto por carapaus fritos, xima de milho (que eu viria a descobrir ser o meu maior terror em África porque detesto e faz parte da base alimentar) e tomates que as irmãs não se cansavam de elogiar e de afirmar que provinham da machamba do convento. Salvou-me a papaia doce e macia da sobremesa.
Horas depois de ter chegado consigo finalmente ficar sozinha no meu quarto. Olho angustiada para o crucifixo com aquela figura agonizante e ensanguentada e resolvo esconde-lo debaixo da cama, onde não o visse. Não ia conseguir descansar sem tomar um banho, por isso, num último esforço peguei nas minhas coisas e dirigi-me à casa de banho.
- A xará tá indo tomar banho? – pergunta-me a irmã Lúcia, saída não sei de onde.
- Sim. Sabia-me bem refrescar-me um pouco…
- Então tem de pedir às meninas para lhe trazer água – diz ela. E perante o meu olhar surpreendido a olhar para o chuveiro diz-me a rir:
- Ah! Isso tá aí desde os tempos do colonialismo que estas casas são antigas. Mas não tem água nos cano não. A gente se abastece no poço do quintal e pra tomar banho as meninas têm de trazer bacia com água e caneca. Aguarda aí que eu vou já providenciar.
“Água fria, portanto” pensei eu desanimada e quase à beira de um ataque de nervos antes do meu primeiro banho de caneca.

- Lúcia, nós vamos sair para visitar uma irmã doente no hospital. Queres aproveitar para conhecer um pouco melhor a cidade? – grita uma das irmãs enquanto bate energicamente na porta do meu quarto.
- Sim, boa ideia, vou só vestir-me e já saio – disse eu enquanto fechava o computador e punha de lado os livros, agradecida por aquela oportunidade para interromper o trabalho.
No pátio duas mulheres discutiam acaloradamente sob o olhar sereno e divertido de uma outra, a irmã Lini, uma freira indiana, goesa, tão linda que me parecia sempre saída da capa de uma revista de moda e desenquadrada no convento. Ela aproximou-se de mim, sorriu e fez sinal para me sentar, na certeza de que a discussão ia ser longa.
- Ambas querem levar o four four. É sempre assim para saber quem vai conduzir.
Fiquei a olhar aquelas mulheres a disputar o jipe como se fossem duas adolescentes, quando de repente aparece em cena uma mulher africana enorme, vestida de capulana verde e amarela da cabeça aos pés, pega na chave, entra no jipe e liga a ignição.
- A madre superiora acaba sempre com as discussões. É quase sempre ela que conduz, o que é uma desgraça para nós pois põe a vida de todas em perigo de cada vez que pega no four four.
Mal nos acomodamos todas o jipe arrancou com dois solavancos violentos parando quase em cima do portão que o Sr. José, o porteiro, tentava abrir o mais rapidamente possível para sairmos. O bairro onde se situava o convento era muito movimentado e a rua estava cheia de gente pois o passeio era um verdadeiro mercado informal onde se vendia de tudo desde bebidas brancas e tabaco, a pipocas, bens alimentares, filmes pornográficos, roupa, cartões de carregamento de telemóvel, galinhas e quase tudo o que se imaginasse. A saída do jipe do convento, a alta velocidade e com pouca precisão na direcção criou algum alvoroço entre clientes e vendedores. Ao meu lado uma irmã rezava baixinho com um terço na mão. Quando um miúdo atravessou a rua a correr mesmo à nossa frente soltei um grito abafado e agarrei-me com mais força o banco.
- Não tenhas medo Lúcia! – disse-me a madre superiora a rir – Estamos com Deus, não temos de nos preocupar que não nos vai acontecer nada de mal – afirmou peremptória soltando uma forte gargalhada.
Não fiquei mais descansada com a promessa de segurança divina mas comecei a gostar da adrenalina da viagem.
- Sabes que uma vez – continuou ela - fui buscar o Bispo ao aeroporto e ele disse que nunca viu ninguém conduzir como eu, que de certeza que tinha a mão de Deus sobre a minha no volante.
A gargalhada foi geral.
- Quando queremos pedir alguma coisa ao Bispo basta arranjar maneira de a madre superiora lhe dar uma boleia. Consegue tudo o que quer – afirmou a irmã Lini provocando ainda mais gargalhadas.
Quando finalmente chegamos ao hospital sentia-me como se tivesse terminado uma sessão de contorcionismo mas estávamos todas divertidas e a rir das manobras alucinantes do four four.
- Quem é que vamos visitar? Está muito mal? – perguntei eu.
- É a mãe de uma das nossas noviças. Está com SIDA e não deve ter muito mais tempo de vida – respondeu a madre. - Revezamo-nos para a vir visitar e depois aproveitamos para trazer alguma comida, roupa ou medicamentos para os outros doentes. Aqui é a família que tem de cuidar dos doentes quando eles estão no hospital.
Não percebi muito bem o que aquilo significava até entrar no quarto onde se amontoava uma multidão de pessoas. Eu não conseguia distinguir exactamente quem eram os doentes e os outros. Algumas camas eram partilhadas por duas ou três pessoas, homens e mulheres, velhos e crianças numa promiscuidade doentia que parecia mais acertada para acelerar a morte do que para curar as doenças, como pude comprovar pela companheira de cama da mulher que visitávamos, que sofria de pneumonia. E o cheiro, o cheiro a doenças, suor, comida, o cheiro a morte impregnava todo o ambiente. As irmãs distribuíram o pouco que traziam, rezaram junto dos doentes e da família e fizeram-nos rir, fizeram-nos rir muito. Eu não servi para nada. Comecei a sentir náuseas e tive de vir para a rua apanhar ar até ao final da visita.

Mais tarde, enquanto lia serenamente no pátio, a minha xará aproximou-se de mim e disse-me que as noviças queriam saber como é que eu conseguia fazer o meu penteado. Soltei uma gargalhada. O meu cabelo é encaracolado, tipo fios de telefone e eu não lhe faço absolutamente nada… é mesmo assim. Juntei-me às miúdas para lhes explicar o fenómeno. Estavam a pelar tomate para fazer doce, todas sentadas à volta de uma bacia gigantesca e envergonhadas não levantavam os olhos para mim e falavam tão baixinho que eu mal as entendia. Peguei no canivete e comecei a pelar tomate também e ao final da tarde, já familiarizada com as raparigas iniciei a minha incursão no universo das tranças africanas. Aprendi a fazer vários tipos de penteados e começou a ser hábito à noite depois do jantar, quando acabava a novela e as irmãs se recolhiam, juntar-me ao grupo e continuar a minha formação. Pelo meio também aprendi a fazer doce de tomate, doce de papaia e doce de abóbora e ensinei inglês, salsa e ioga.

Uns dias depois, falava com a irmã Júlia sobre o quanto me sentia envergonhada por ter fraquejado no hospital.
- Lúcia, que disparate. Ninguém fica indiferente ao sofrimento dos outros principalmente quando não estamos habituados. E não podes esquecer-te que aqui somos todas four four como os jipes. Já passamos por guerras, fomes, doenças em vários países. Somos missionárias – disse ela para me animar.
- Mas vocês conseguem rir e fazer rir…
- Olha… estás a ver a irmã Doroteia, com aquele ar frágil? Os seus oitenta e nove anos permitiram-lhe participar na maioria dos grandes momentos do século XX. O pai dela era o dono de todas estas terras que agora formam o bairro. Era gente endinheirada, mas quis seguir a vida missionária e foi enfermeira na segunda guerra mundial, viu quase toda a família morrer durante a guerra civil, em Angola foi refém da Unita, no mato durante meses… a irmã Ermelinda foi violada durante a guerra e abandonada à morte, perdeu o marido e os filhos e ficou quase enlouquecida até decidir…

- Vocês estão com um ar muito sério! – Interrompe-nos a irmã Doroteia a sorrir. – Não querem ajudar-me a preparar a lição da catequese de amanhã?
Por segundos pensei que brincava comigo, mas não, aquela velhinha adorável queria mesmo a ajuda de uma agnóstica convicta, anticlerical para ajudar a preparar a lição da catequese. Ainda tentei argumentar que não tinha formação religiosa, que não ia à missa, que não sabia rezar, nem o nome dos santos e muito menos os mandamentos, mas nada a fez mudar de ideias. Durante o jantar fui o alvo preferido do humor aguçado das irmãs, que faziam questão de no dia seguinte assistir à lição de catequese dada por mim.
- Não, desculpem, eu ajudei a preparar a lição… uma ajuda muito modesta aliás, não me peçam mais nada por amor de Deus – disse eu muito aflita. E mal acabei a frase começo a ouvir uma gargalhada generalizada.
- Irmãs, temos de dizer ao Bispo que os nossos métodos de conversão de novos católicos estão cada vez mais eficazes. A irmã Lúcia está a descobrir a sua vocação – afirmou provocadora a madre superiora e eu desato a rir com elas.

Nesse domingo depois da missa, a que assisti depois de toda uma vida de costas voltadas para a Igreja, juntei-me ao grupo da catequese, onde quase todos eram adultos ou adolescentes e preparei-me para falar da tolerância e do amor ao próximo. Engoli em seco e comecei hesitante a recitar a cartilha que tinha preparado com a irmã Doroteia. Eu suava, gaguejava e olhava incessantemente para o relógio. O grupo olhava-me catatónico, sem interesse nenhum e tenho a certeza que noutro contexto qualquer me apupavam e atiravam com tomates se eu não me calasse rapidamente. E então, de repente, disse-lhes:
- Muito bem, já todos percebemos que isto está a correr mal. Vamos tentar outra coisa. Vou contar-vos uma história, a minha história. A história de uma rapariga que chega aterrorizada a um convento com a perspectiva de aí passar um mês alojada, cheia de preconceitos e medos de coisas que não conhece e que acaba por descobrir por trás dos hábitos, dos rituais, da religião pessoas extraordinárias…
No final da lição, que durou mais do que o previsto, vejo o rosto da irmã Doroteia iluminado e a sorrir-me, a irmã Júlia a enxugar as lágrimas e o grupo da catequese levanta-se e começa a cantar e a dançar à minha volta. Fizemos uma verdadeira festa improvisada e desta vez eu também cantei, ri e dancei até não poder mais.

Nos dias seguintes, a minha fama de oradora e catequista, ultrapassaram os muros do convento e foi alvo de muita risada e brincadeira. Felizmente estava perto o dia da despedida pois tinha de seguir para outra província para continuar o meu trabalho, senão não sei o que seria de mim hoje. Antes de partir, no meio de muitos abraços, beijos, prendas e algumas lágrimas a madre superiora aproxima-se e oferece-me uma chave.
- É a chave do convento Lúcia. As portas desta casa estarão sempre abertas para ti. Lembra-te de nós quando olhares para ela e não te preocupes por não saberes rezar pois vais fazer sempre parte das nossas orações.

31/08/07



Nas próximas semanas vou estar longe de computadores, telemóveis, betão, poluição e tudo e tudo e tudo. Não vou visitar as latitudes do meu coração, nem para nenhum dos lugares que a imagem sugere mas só volto lá mais para o final do mês, com mais histórias para contar.

Entretanto, deixo histórias para todos os gostos para irem lendo...

28/08/07

Zé do Muro

O Zé do Muro e o Rafa formavam uma dupla famosa em toda a Ribeira. Nunca aquelas gentes viram um sem logo a seguir aparecer o outro e estavam habituadas à sua presença sincronizada.
O Rafa era um cão rafeiro baptizado pelo povo sem recurso a muita imaginação. Para o universo canino poder-se-ia dizer que tinha uma certa idade pois contava já com uns bons dez anos integralmente vividos entre Miragaia, a Sé e a Ribeira do Porto. O Zé do Muro era um pouco mais novo. Nasceu na rua de Cima do Muro e é filho da Ribeira inteira, apesar de oficialmente estar entregue aos cuidados de uma tia materna, desde que os pais se encontram presos. Normalmente eram detidos intercaladamente, mas da última vez tinham ido juntos para a cadeia e ficariam por lá algum tempo.
Sempre achei extraordinária a forma como na Ribeira se classifica as pessoas através do nome, como se fosse um código local, associando a toponímia, a origem familiar ou qualquer atributo físico ao nome próprio. Ninguém é só José, ou António, ou Maria, ou Alice. Não! Na Ribeira tem de se ser sempre mais qualquer coisa para que se saiba bem de quem se está a falar. Tem de ser o Tono Mouco, o Manel das Canas, a Mariazinha de Belmonte… e por aí adiante e portanto, o Zé era o Zé do Muro, não fosse a gente confundi-lo com outro Zé qualquer. Também sempre achei extraordinária a periodicidade e simplicidade com que muitos dos habitantes locais frequentam estabelecimentos prisionais, famílias inteiras que têm Custóias como uma segunda casa, miúdos que mal podem fugir ao sistema de ensino se entregam ao negócio do tráfego de droga para ajudar a família e que rapidamente entram na rotina de entrar e sair da prisão. A Ribeira é um verdadeiro microcosmos e foi aí que conheci o Zé do Muro.

- Rafa, despacha-te que estou a ficar com fome e o Zé dos Ovos está à nossa espera com o almoço – gritou o Zé do Muro, sentado no cais, para o amigo que ao fundo da rampa perseguia furiosamente uma ratazana mais descarada.
- Cheiras mal! Assim não nos deixam nem chegar perto do restaurante. Cheiras a podre como o lodo do rio. Vai tomar banho já! E não venhas sacudir-te para a minha beira, sacode-te longe.
O Rafa ainda tentou argumentar que a água na maré baixa também cheirava mal, soltando dois latidos, mas vendo que o companheiro continuava com aquela mania da limpeza lá foi obediente a banhos e limpou-se o melhor que pôde para irem ao restaurante. Mal os viu, o Zé dos Ovos foi buscar um embrulho tosco feito com o papel de uma toalha de mesa, cheio de ossos e restos para o Rafa e um prato de comida para o Zé do Muro.
- Vocês vêm sempre na hora certa. Devem ter um relógio na barriga desacertado com o dos turistas. Quando eles acabam e a gente começa a arrumar vocês aparecem logo – disse o homem bem humorado enquanto lhes entregava a comida.
- É que quando deixa de cheirar a comida a gente fica com medo que ela acabe e vimos logo a correr – respondeu o Zé do Muro a brincar enquanto se instalavam mais à frente na sombra das arcadas e afastados da curiosidade dos turistas.
Depois de comer o Rafa não resistia a dormir a sesta esticado ao sol e o Zé do Muro, ainda que por uma questão de solidariedade, encostava-se confortavelmente e fechava os olhos. Normalmente não conseguia propriamente dormir mas gostava de se entreter a tentar adivinhar o que se passava à volta dele. Sentia o cheiro forte das azeitonas do Quim Manco e da fruta da Salete do Quintas e ouvia as conversas apaixonadas que os dois amantes, ambos casados com outras pessoas, sussurravam um ao outro; sentia o cheiro doce da lã e da palha que enchiam as lojas de artesanato, transformadas em camisolas quentes que insistiam em vender em Agosto, e em cestaria que os turistas adoravam tocar e remexer. E assim conforme era mais intenso o cheiro da fruta ou da palha, das azeitonas ou da lã ele sabia qual era a loja que tinha mais turistas, isto tudo para além do cheiro a cerveja que inundava sempre a Ribeira. E adorava prever o tempo através do cheiro do rio. Tinha desenvolvido um gosto especial pela meteorologia e um sistema quase infalível de previsão. Conforme o rio se elevava no ar trazendo com ele o aroma da humidade e o toque da neblina, ou ficava parado a espelhar a ponte sem levantar uma brisa, ou se abria como um esgoto para lhe saírem os maus cheiros das entranhas, o Zé do Muro era capaz de prever se ia fazer sol ou chover, se ia haver vento ou calor e divertia-se a informar as pessoas das suas previsões meteorológicas.
De vez em quando a tia, a meio das suas lides, lá vinha à porta de casa gritar por ele e o nome do Zé do Muro ecoava por toda a Ribeira. Nessas alturas, ele pegava no velho Rafa pela coleira e corria escadas acima até ao muro para não fazer esperar muito a tia, que era conhecida por Tina Maluca. Ela tinha sempre muitos recados para ele fazer: comprar açúcar na mercearia, levantar uma encomenda na Gina dos Guindais, levar um embrulho à associação recreativa, comprar ovos, chamar a Zita Bela porque tinha um recado para lhe dar… enfim, a tia ainda não descobrira o maravilhoso mundo dos telemóveis e fazia do Zé do Muro um verdadeiro pombo correio.
Nesse dia, a meio da sesta lá se ouve por toda a Ribeira a voz da tia e os dois amigos interrompem o descanso e lançam-se muro acima para se apresentarem ao serviço.
- Zé, meu estupor! Tás mouco?! Tou quase sem voz de tanto gritar por ti… Já sabes que não te quero longe de casa! Preciso que leves isto à Rosa da Touca nos Guindais e depois aproveita e diz ao Zé Noite que preciso falar com ele – disse-lhe a tia furiosa, enquanto lhe entregava um pequeno embrulho.
O Zé do Muro, como um verdadeiro profissional dos recados, volta a agarrar no Rafa e correm até às escadas dos Guindais que sobem a contar os degraus. Já sabem de cor onde é a casa da Rosa da Touca, mas o Zé do Muro gosta de contar degrau a degrau o caminho.
No regresso com uma saca de plástico na mão para entregar à tia, pressente um alvoroço estranho em cima do muro e resolve fazer um desvio por baixo, pelos arcos. Ao passar pela São Só, ela oferece-lhe um gelado de máquina e ele aproveita para se sentar um pouco no cais até lhe sossegar um pouco o coração e perceber o que se passa. Foi então que outro cão se aproximou dele a correr, de tal forma que parecia enlouquecido e que o Rafa se levantou e se atirou a ele para defender o amigo. Os dois animais iniciaram uma luta desenfreada e sangrenta e o Zé do Muro levantou-se assustado, aos gritos e tentou proteger o amigo, acabando por ser atirado ao chão. É nesse momento que eu chego, a correr também, ofegante, chamo o Golias e tento separar os dois cães. Mal o Zé do Muro consegue segurar o Rafa, o Golias desvia a atenção dele e concentra-se no saco de plástico caído no chão junto a eles, começando a ladrar desalmadamente.
Eu pego no saco, abro-o e aceno para os meus colegas da polícia que em Cima do Muro revistavam a casa e prendiam a tia do Zé do Muro. O saco, cheio de doses individuais de cocaína era a prova de que precisávamos para deter a mulher, mas de repente olhei para o miúdo assustado à minha frente, com as lágrimas a cair pela cara abaixo, muito agarrado à coleira do cão com uma mão e com a outra a fazer-lhe festas de conforto no lombo e fiquei sem saber o que lhe fazer.
- Você é da polícia? – pergunta-me o Zé do Muro, muito sério.
E eu fico perplexo, pois só então percebi que o miúdo era cego e que não percebia o que se estava a passar.
Sentei-me com ele no banco, junto ao rio.
- Eu sou polícia. Chamo-me José e tu?
- Eu também me chamo José, mas não sou um José qualquer, sou o Zé do Muro.

13/08/07

Mar de Morte II

(Continuação) Este conto começa em Mar de Morte I, no post anterior.

O barco tombado permitia-nos usufruir de um pouco de sombra. Voltei a arrastar-me para dentro dele em busca de protecção e aí fiquei a tentar ordenar as ideias. Via o José, a irlandesa e os outros homens a discutir violentamente mas nem ouvia o que diziam tal era o barulho dos meus pensamentos. Nasci na Ilha, numa casinha cor-de-rosa com um alpendre aberto para o mar. Todas as memórias da minha infância estão presas a esse cenário. O meu pai era mergulhador e caçador de tesouros. Há centenas de navios naufragados nos recifes costeiros, sobretudo dos séculos XV a XVII quando o comércio com a Índia florescia e estes transportavam ouro, prata, porcelanas Ming e jóias. Mesmo durante a guerra ele mergulhava e comercializava os achados com coleccionadores de todo o mundo. Era uma actividade ilegal, corrupta, mas acho que apesar de tudo o meu pai gostava mesmo do que fazia. Gostava tanto que acabou por centrar toda a sua vida no trabalho e a família foi descendo níveis de prioridade na sua lista de preocupações. Um dia a minha mãe pôs um ponto final naquela situação e foi embora. Levou-me muito jovem para a Europa e nunca mais voltei à Ilha.
Um dia o José apareceu. Conhecia-o desde que me lembro pois fora sempre o ajudante preferido do meu pai. Disse-me que ele tinha morrido e que sempre lhe falara num tesouro que nunca chegou a vender e que escondera na sua casa da Ilha. O José queria encontra-lo e precisava da minha ajuda. Por qualquer motivo o meu pai associava sempre o meu nome ao tal tesouro. Eu disse-lhe que não voltaria à Ilha, que não me interessava tesouro algum, que devia ter sido um delírio do meu pai. Ele lançou-me um olhar gelado e com incrível violência deixou cair a mão direita na minha face e atirou-me ao chão. Ainda atordoada com tudo aquilo, com os lábios a sangrar e o rosto a arder tentei levantar-me quando José me agarrou pelo cabelo, me ergueu no ar e murmurou ao meu ouvido, cheio de raiva, que se não o ajudasse a encontrar o tesouro me matava. Fiquei refém dele desde esse dia e sem um único momento de paz, de solidão. O José era uma presença constante, seguia-me por todo o lado, não tirava os olhos de mim… e eu fui perdendo vontade própria e coragem.
E agora estávamos ali, a caminho da Ilha, no meio do mar. Estava perdida nestes pensamentos quando o Mar se aproximou e se sentou ao meu lado.

- Moça bonita está triste – disse-me ele com um ar doce.
- Um bocadinho Mar, mas já passa. Estou com medo desta viagem que nunca mais acaba.
- A moça não precisa ter medo. O mar do canal só mata quem não tem chão à espera – respondeu ele enigmático com os olhos fixos em mim.
- Estou a ver que sabes muitas coisas – disse-lhe eu a sorrir enquanto lhe afagava a cabeleira farta.
- Confia em mim moça e não sai deste barco – continuou Mar com a sua vozinha calma, quando de repente José chega.
- Vamos! Pega nas tuas coisas e vamos embora. A Ilha não pode estar a mais de duas ou três horas de distância a pé e não ficamos aqui nem mais um minuto com este bando de atrasados mentais – gritou ele enquanto me agarrava pelo braço e me levantava.
Entretanto a nossa companheira de viagem irlandesa aproximou-se para pegar nas coisas dela.
- Meu Deus, não aguento mais esta gente ignorante cheia de mitos e fantasmas… vamos embora que eu não atravessei o continente inteiro para morrer à sede aqui – disse ela exaltada com o seu sotaque irritante.
- Eu não saio daqui – disse eu de repente, quase num sussurro, enquanto olhava para o Mar.
- Mas você não percebe o risco que está a correr? Estamos no meio de um mangal enorme que rodeia as ilhas, onde as marés são intensas e a água chega a desaparecer. Se esperarmos que volte a haver água para navegar ficamos aqui horas ao sol e se não voltar vento continuamos aqui parados e voltamos a encalhar na próxima maré. Se formos a pé chegamos à Ilha antes de o mar subir – explicou quase cientificamente a irlandesa.
- Tu estás parva! Pega nas coisas já e vamos embora daqui! – gritou o José irado enquanto me agarrava novamente no braço e me sacudia como se eu fosse uma boneca.
- Eu não vou! – repeti eu, agora num tom decidido. – Estou cansada, sem forças e fico aqui à espera da maré. Encontramo-nos depois na Ilha.
O José puxou da arma que trazia sempre escondida nas calças, apontou-a à minha cabeça e obrigou-me a ir com ele. A irlandesa ficou paralisada com a cena mas rapidamente recuperou e veio atrás de nós. Quando nos afastávamos do barco o Mar veio a correr juntar-se a nós. Disse a José que sem ele nunca mais encontrariam o caminho para a Ilha no meio do mar. Sem tirar os olhos de mim e com a arma sempre apontada José ignorou-o e ele veio connosco. Eu, sem saber porquê senti-me mais tranquila, mais protegida. Algum tempo depois estávamos todos desesperados com o calor, a sede, a fome e mal nos conseguíamos manter em pé. Todos menos o Mar que seguia tranquilamente como se se tratasse de um passeio. A dada altura eu tropecei e caí. Sentia uma fraqueza letal no corpo, tudo girava à minha volta e sentia-me flutuar, leve, lentamente a deixar de sentir os efeitos daquela viagem brutal. À distância vejo a irlandesa a discutir com o José e ele a apontar-lhe a arma e a disparar directamente no peito. Ela tinha-se tornado num empecilho e ele eliminou-a. Depois vejo o Mar a aproximar-se lentamente do José, a parar à frente dele e a abrir os braços. O José lança-lhe um olhar assassino e de repente quando vai a levantar o braço para atirar no Mar começa a tremer, a contorcer-se violentamente com os olhos muito abertos cheios de desespero. A arma cai e ele leva as mãos ao pescoço numa tentativa desesperada para respirar até que acaba por cair asfixiado. Entretanto começa a sair um fio de água da boca e do nariz do cadáver que rapidamente se torna num pequeno lago que o rodeia e começa a cobrir.

- Moça, acorda. Bebe um pouco de água – disse-me ternamente o Mar estendendo-me uma caneca.
- Mas… estamos no barco?... o que aconteceu? – perguntei confusa, tentando ordenar as ideias.
- O seu José matou a senhora estrangeira… se enervaram, discutiram e ele disparou nela – disse o Mar.
- E ele, o que lhe aconteceu a ele – perguntei eu confusa, com as lágrimas nos olhos, olhando em volta a tentar ver onde ele estava.
- Ele morreu afogado que o mar não gosta de sangue a manchar suas águas. O mar matou ele e depois de tratar dos seus assuntos voltou para nos levar. Não chora mais que daqui a pouco a moça vai chegar a casa – disse o Mar para me confortar.
Os outros homens e Mestre Josenias estavam atarefados manobrando o barco. A maré trouxe com ela o vento e o barco galgou as ondas até vermos a Ilha no horizonte. O Sol começava a desaparecer e espelhava no mar um tumulto de laranjas que pareciam labaredas. Ao longe, no lado direito da Ilha vi de repente um ponto cor-de-rosa no meio do verde luxuriante da vegetação. Senti como se estivesse a atravessar um mar de chamas, o próprio Inferno para chegar àquele lugar.


- Olha moça, a Ilha está a ficar famosa – disse o Mar entrando de rompante no alpendre, com uma revista aberta nas mãos.
- Ei! Calma – disse-lhe eu a sorrir lançando um olhar de cumplicidade. – Já estamos habituados. Desde que descobrimos aqueles documentos antigos do meu pai que a Ilha é famosa em todo o mundo.
- Nada! Olha aqui foto da Pousada Cor-de-Rosa… e eu, olha eu ao lado do Mestre no barco cheio de turistas – disse Mar todo entusiasmado com esta fama súbita.
E ali ficamos o resto da tarde, embalados pelo som das ondas no alpendre, em frente ao mar, a ler a reportagem sobre a pousada e as maravilhas da Ilha como se nunca tivesse havido vida para além do canal.

09/08/07

Mar de Morte I

Já não conseguia abrir os olhos. O Sol do meio do dia a reflectir-se no mar criava um efeito de luz difusa tão intenso que diluía as cores da paisagem e cobria tudo com um véu leitoso, ofuscante, como se a estrela se incorporasse em tudo à nossa volta emitindo luz. O calor e a humidade há já muito que me tinham despojado da energia e da vontade mas agora sentia-me cegar. Mesmo com um enorme pano de algodão a cobrir-me o corpo e a cabeça e os olhos fechados era capaz de ver aquela luz uniformizadora como se ela estivesse dentro de mim. Estava aninhada no chão do barco, com as costas amparadas por dois enormes sacos de arroz a tentar abstrair-me da hora da canícula. O barco deveria levar-nos para a Ilha. Tínhamos enfrentado oito horas de picada, em plena época das chuvas, pelo meio da floresta tropical, para chegar ao lugar de onde partem os barcos para a Ilha. Tínhamos passado a noite no jipe, sem posição de dormir à espera que o dia nascesse para embarcarmos no primeiro barco que se fizesse ao mar. Mas a noite foi crescendo agreste e logo os relâmpagos nos deixavam ver o dia por entre trovejos assustadores. Era um presságio de chuva e má sorte. Quando o dia acordou deste pesadelo tivemos muita dificuldade em encontrar um barco que atravessasse o canal. Os homens tinham constatado mil e um sinais de má fortuna e fazendo fé nas suas crenças recusavam-se a contrariar a natureza.
Depois de uma acesa negociação, Mestre Josenias aceitou o serviço exigindo apenas que deixássemos vir connosco o pequeno Mardemorte, um miúdo órfão, lá do bairro dos pescadores. Enquanto esperávamos que a maré ficasse de feição para a viagem chegou uma mulher que nos pediu para a levarmos à Ilha. Viajava sozinha, era irlandesa e não tinha medo dos presságios de má sorte. Saíra da Irlanda para ir à África do Sul há anos mas ainda não chegara lá. Perdera-se no continente e deambulava de país em país na ânsia de encontrar sentido para a viagem. Nós éramos apenas dois e portanto havia muito espaço no barco para partilhar. A meio da manhã a chuva cortante amansou e acabou por desaparecer levando com ela o vento. Ao barco, parado no meio do mar, só lhe restava aguardar que novo sopro o encaminhasse. Era um barco tosco, construído por mãos hábeis mas sem grandes ferramentas, com uma vela de remendos e madeira bichada, talhado para a pesca e para viver ao ritmo das marés do canal.
A única preocupação de todos era protegermo-nos do sol e guardar as poucas energias que restassem. Cada um de nós estava coberto com o que podia, sem ousar movimentos, e um silêncio de morte tinha-se instalado no barco. Todos não… que Mar (o diminutivo que usavam para chamar Mardemorte) continuava desperto e vigilante, sentado na proa, de olhos bem abertos a perscrutar o horizonte. Há horas que não nos movíamos nem um milímetro e José, o meu companheiro de viagem começou a exaltar-se e quebrou o silêncio com agressividade, questionando Mestre Josenias sobre a necessidade de fazer alguma coisa, querendo saber onde paravam os remos e sobretudo muito enervado com a passividade de todos.

- Não tem remos no barco. A gente não rema contra a vontade do mar… a gente espera… - disse calmamente o Mestre deitado junto ao leme, sem abrir os olhos.
- Mas que merda é esta? Assim vamos morrer todos! Estamos aqui há horas parados, quase sem água, sem comida e eu preciso chegar esta tarde à Ilha – continuou o José cada vez mais exaltado, enquanto eu me mantinha imóvel, agora com a cabeça descoberta mas quase sem respirar.
- Nada! Aqui só vão morrer dois e tem muito tempo ainda – disse subitamente Mar, desviando os olhos do horizonte e voltando-se para trás.
- Que raio…? Mas… ouviram isto? Tu não me enerves fedelho! – disse o José lançando-se na direcção do Mar como se o fosse atirar borda fora.
- Calma! – Disse-lhe a irlandesa num português cheio de sotaque, agarrando-lhe o pulso e fazendo sinal com a cabeça para olhar em volta pois os três ajudantes de Mestre Josenias tinham despertado da sua hibernação e fitavam o José com ar ameaçador.
- Sossegue patrão, que o tempo já não está nas nossas mãos. Gente agora tem de esperar, que o mar tem seus caprichos e suas razões. E não toque no Mar, que ele é nosso leme e nosso mapa nesta viagem. Ele nasceu no mar e nessa mesma noite o barco onde ia afundou levando todos os outros para o outro mundo. Só ficou Mardemorte, filho do mar e filho de toda a gente, como são as crianças na nossa terra – continuou sereno Mestre Josenias.

Contrariado José voltou a sentar-se ao meu lado. A irlandesa cobriu a cabeça com uma capulana e encostou-se no fundo do barco. Os homens voltaram a deitar-se. Mar contemplou novamente o horizonte. E eu voltei a cobrir-me e a chorar baixinho como era meu hábito desde o dia em que decidi matar o José. De repente sentimos um movimento, a madeira rangeu ruidosa e o barco tombou e ficou deitado como se tivesse chegado exausto a um destino e não aguentasse nem mais um minuto em pé. Caíram-nos em cima as mochilas, os sacos de arroz, as cordas, caímos uns em cima dos outros e quando nos conseguimos levantar olhamos em volta e vimos areia até perder de vista. O mar tinha desaparecido e o velho barco estava agora encalhado no meio de um infinito deserto.
(continua)

30/07/07

Jacarandás azuis do Huambo

A caminho do Lar para visitar o meu avô, tentava apaziguar o espírito e o sentimento de culpa que me atormentava por não o ver mais vezes. Enquanto descia a Rua da Boavista e me aproximava da Carvalhosa o meu estômago ia-se apertando e na minha cabeça abundavam os pensamentos tristes. Éramos os dois toda a nossa família. Vivemos sempre juntos até que um dia, de um momento para o outro, perdi o meu avô. A culpa foi de um AVC que lhe desarranjou a mente e lhe debilitou o corpo tornando-o dependente e exigindo cuidados constantes. Desde esse dia o meu avô vive no passado, que lembra com extraordinária exactidão. Revive vezes sem conta as alegrias, tristezas, tragédias e emoções que o marcaram ao longo dos seus setenta e dois anos de vida e é incapaz, durante a maior parte do tempo, de se lembrar do que fez há cinco minutos. É capaz de acender o fogão para fazer um chá e provocar um incêndio, de abrir a água para o banho e ver-se a braços com uma inundação, de entrar no autocarro para ir ler o jornal ao Palácio e depois não se lembrar qual o autocarro que o traz de volta para casa. Por vezes tem momentos de lucidez. Eu desço a rua da Boavista a rezar para que a minha visita coincida sempre com um desses momentos. É muito doloroso ver o meu avô naquela casa, perdido nas suas memórias, morto para mim que já não o reconheço. O meu avô, um homem forte, encorpado, de olhos azuis muito vivos e cabeça sempre erguida, que cuidou de mim, que me ensinou tudo o que sei e que enfrentou com coragem todos os desafios que a vida lhe lançou, agora não é mais que um homem à espera da morte.
Ia perdido nestes pensamentos quando finalmente cheguei ao Lar. Encontrei o meu avô sentado num cadeirão no jardim, a dormitar. Ele tinha cada vez mais dificuldade em movimentar-se, com o corpo a ceder aos anos e à doença, mas obrigava sempre os funcionários do Lar a colocarem-no no jardim. Nunca gostou de estar fechado, de espaços pequenos e a doença não lhe curou a claustrofobia.

- Olá avô! Que belo dia para se estar no jardim. Como te sentes? – perguntei eu angustiado tentado perscrutar no rosto dele se aquele era um dia de lucidez.
- João, meu filho, ainda bem que chegaste. Precisamos ir ao Huambo!
- O quê… mas avô… - comecei eu a balbuciar invadido por uma tristeza infinita.
- Não João, não estou doido. Estou com saudades. Quero acabar a vida na minha terra, visitar o túmulo dos meus antepassados, os lugares da minha juventude… quero voltar para nossa casa João.
- Mas avô, tu estás doente, a viagem é longa… não ias aguentar.
Caiu sobre nós um silêncio inquietante e eu sentia a mente dele em luta com o corpo debilitado, a estudar todas as possibilidades, a analisar o assunto de todas as perspectivas para depois me apresentar novos argumentos. É assim o meu avô.
- João, promete-me uma coisa: quando eu partir tu partes também. Partimos juntos para outro mundo. Eu vou ter com todos os que amei, que me aguardam do outro lado, o teu pai, a minha doce Alice… e tu voltas a Angola, ao Huambo, à tua terra. Voltas lá nem que seja só para encontrares essa parte da tua história e depois segues com a tua vida.
- Prometo avô – disse eu muito sério, cheio de medo de o perder e de me lançar naquela empreitada.
- E agora, meu filho, vai buscar a cadeira de rodas e leva-me ao Largo do Viriato – disse ele cheio de energia e bem disposto – que o jacarandá deve estar florido e faz-me sentir mais perto de casa.

O sol brilha no Huambo. É sempre assim. Sol e calor. Estamos na época dos morangos e mamões, do calor seco e do pó vermelho, dos jacarandás azuis que pintam o céu da cidade.
O meu avô partiu há 3 meses. O seu velho coração parou de bater durante o sono e ele partiu em paz para uma viagem que aguardava há muito tempo. A minha viagem demorou a preparar. Eu nunca estive preparado para a fazer. Fui para Portugal ainda criança, pela mão do meu avô. Ao contrário da maioria dos “retornados” não tínhamos família, nem raízes no velho continente. O meu tetravô chegou a Angola no início do século, fugido de uma guerra qualquer e determinado a voltar as costas à pátria e instalou-se no Huambo desde o dia em que a cidade, então Nova Lisboa, foi construída com o intuito de ser capital do país. A história trocou-lhe as voltas e retirou-lhe esse protagonismo mas a cidade cresceu e transformou-se no lar da nossa família. O meu tetravô viveu muitos anos e pôde ver o seu “império” familiar crescer durante quase um século, um império de amor e afectos que se estendeu a toda a província. Cresci a ouvir o meu avô contar histórias desse império, do irmão dele que vivia na Luvemba e casara com uma filha do Soba, das idas ao Bailundo para visitar os avós, dos tios da Caála... histórias do jango e da Ombala como ele dizia ao som do umbundo, uma língua que ele insistia em ensinar-me quando eu era criança. O meu avô dizia sempre que a cor da pele não definia as nossas origens e que a nossa família de brancos e mulatos era angolana até à alma. Ele perdeu tudo entre duas guerras, a colonial e a civil. Perdeu coisas, propriedades, dinheiro, mas perdeu sobretudo o império de afectos, as pessoas que amava e quando já só éramos os dois, guardou no coração o outro amor que lhe restava, o amor pelo Huambo e partiu comigo para um país desconhecido.
Eu cresci e estudei sem grande convicção, que nunca soube o que queria fazer da vida, mas obrigado pelo sentido do dever imposto pelo meu avô. Transformei-me num homem tranquilo, sem grandes sonhos nem projectos, sem grandes amigos nem grandes paixões. Senti-me sempre seguro com coisas simples. A paixão e arrebatamento do meu avô pela vida bastavam-me. Vivia esses sentimentos através dele mas no meu pequeno mundo eram as pequenas coisas do quotidiano, a disciplina do meu dia, os meus hábitos inalteráveis que me norteavam e me davam serenidade.
Cumprir a promessa feita ao meu avô e partir foi a maior aventura da minha vida. Estou no Huambo há duas semanas. A guerra acabou há apenas três anos e os contrastes que se vivem e se sentem por aqui provocam-me tumultos que nunca antes senti. Tudo é grande, imenso, avassalador. A cidade está a renascer. A reconstrução parece imparável e há uma dinâmica de esperança que emociona. Mas há também as histórias da guerra que já não consigo ouvir, os escombros e as ruínas, as marcas dos ataques aéreos e de balas que perfuraram a alma dos edifícios da cidade, os mortos que ainda estão sepultados nos quintais, os órfãos, os loucos, os miseráveis, as minas que nos travam os passos, a falta de luz e água potável, a falta de saneamento e o lixo. A minha salvação são os jacarandás, que me lembram o meu avô e a força dele. O Huambo está coberto de flores azuis que dão cor ao céu e que me fazem sentir, de alguma forma, em casa.
Disseram-me que a época das chuvas está quase a chegar e que a paisagem mudará completamente. Tudo ficará verde, as mangas vão amadurecer, o ar vai adoçar com o cheiro a terra molhada e eu decidi ficar por cá mais tempo para assistir à transformação.

19/07/07

Tertúlia no Jardim Tunduru

Estavam todos reunidos à volta de um antigo banco de jardim. Sentado ao centro com um livro na mão, Feliciano lia com vivacidade para os demais que ouviam muito sérios aquelas palavras que ganhavam vida na sua boca. O Jardim Tunduru era cúmplice destas reuniões literárias que sempre que possível aconteciam aos sábados de manhã sob as suas árvores centenárias que protegiam o grupo dos olhares curiosos e do sol. A maioria dos rapazes mal sabia ler. Sabiam outras coisas, eram mestres na disciplina de “Fazer pela Vida” desde muito cedo mas não sabiam arrumar bem as letras para criar palavras. Eram sete amigos, todos do Bairro do Aeroporto, quase todos vendedores de batiks. O José e o Alface também eram aprendizes de “artista dos batiks” e ao fim de semana vinham tentar a sorte e vender peças aos turistas juntamente com os amigos vendedores. Sim, porque o grupo apesar de informal funcionava como uma empresa. O Mestre Neto era um artista reconhecido e o seu trabalho podia encontrar-se nos melhores pontos de venda de Maputo, do Piripiri ao Hotel Polana, da Costa do Sol ao Mercado Central. Era ele que desenhava directamente a esferográfica no pano de algodão e que tinha na cabeça a paleta de cores da obra final; depois um grupo de aprendizes “pintavam” pacientemente com a cera derretida e tingiam as várias camadas de cores; primeiro o amarelo, depois o laranja, o vermelho, o preto ou o azul.

O José era o mais novo do grupo e não teria mais de catorze anos. Depois de muitos anos a ajudar a mãe no mercado do peixe tinha chegado à conclusão que queria uma vida menos dura. A ideia de trabalhar sentado todo o dia, trocar o pivete do peixe pelo cheiro da cera e das tintas e ainda poder dizer que era um artista fizeram-no encher-se de coragem e ir falar com o Mestre Neto, seu vizinho. Da sua casa, parede com parede com o pátio do “atelier” José podia ver os batiks coloridos pendurados ao sol, ouvir as galinhas e os patos que passeavam de um lado para o outro e aperceber-se das conversas alheias. Um dia surgiu a grande oportunidade.
- Alface! Andas adormecido outra vez?! Deste com o vermelho no lugar do laranja! Tá tudo estragado, tudo estragado.
- Xi! Desculpa mestre… me distraí…
- És o mais antigo e é só asneiras, só asneiras… desaparece da minha vista!
- Mas eu não posso… - começou Alface a balbuciar como se estivesse à espera de se tornar invisível.
- Desaparece daqui, não te quero ver mais hoje! – Gritou o mestre irritado. E Alface fugiu a correr levantando uma nuvem de poeira e criando um tumulto entre os patos e galinhas que andavam pelo pátio.
José não teve meias medidas e resolveu passar “por acaso” na casa do mestre aproveitando o alvoroço. Contou do seu sonho de ser artista e da dificuldade de convencer a mãe a prescindir da sua ajuda no mercado. Falou como se a arte lhe corresse nas veias e a sua vida dependesse desta oportunidade. Mestre Neto ficou impressionado.
- Eu entendo-me com D. Ermelinda. Ficas aqui a aprender, no lugar do Alface que só dá desgosto.
- Mas pai, o Alface tem mulher e filho e precisa do trabalho – disse Feliciano, o melhor dos aprendizes.
- Assunto encerrado!
- Pai, ele é bom desenhador você é que não deixa ele fazer desenho – insistiu.
- Ele é bom desenhador! Bom desenhador! Então não te lembras quando eu estive doente há uns anos, dos belos desenhos que ele fez de helicópteros?! Batiks cheios de helicópteros por cima das palmeiras, das casas, dos barcos de pesca… helicópteros! Tão bem desenhados que nem sequer passavam por pássaros. E sabes quantos vendi, quantos? Nem um! Nem um!
- Isso foi depois das cheias. Isto andava cheio de helicópteros da ajuda internacional e nós ficávamos a ver aquilo todo o dia e ele quis imortalizar o cenário nos batiks – continuou o Feliciano a defender o amigo.
- Isto é um negócio sério. A gente desenha o que o turista quer e não o que a gente gosta. Já alguma vez viste uma girafa? Não! Mas turista gosta e portanto a gente desenha girafas como se elas passeassem todos os dias aqui pelo bairro… Percebes!? Turista não sabe que no nosso bairro não cabe girafa, que está cheio de gente que mal se pode mexer, mas não interessa… Percebes?! – gritou Mestre Neto muito vermelho com as veias do pescoço salientes e o olhos a soltar faíscas.
- E tu José fica descansado. Amanhã falo com a tua mãe e tudo se resolve.

Acabou por correr tudo bem. José conseguiu o que queria e mestre Neto, que afinal tinha coração mole, acabou por deixar ficar o Alface. Só que para não ter prejuízo acabou por integrar os dois no grupo de vendas em part time. Durante parte da semana eram aprendizes e durante a outra metade eram vendedores juntamente com outros rapazes. Ao sábado era dia da feira do Pau Preto junto ao forte e Mestre Neto tinha um ponto de venda privilegiado onde se concentravam quase todos os seus vendedores. A estratégia comercial estava bem sabida, que era aquela a vida deles. O segredo era vencer o turista pelo cansaço, rodeá-lo de tanta obra de arte que ele perdia o discernimento, deixá-lo sem ar e sem fala no meio de uma roda asfixiante de vendedores em aparente concorrência, todos a gritar em uníssono “Faço bom preço, patrão! Faço bom preço! Olha que ninguém tem preço melhor!” até que num acto de sobrevivência o turista aponta para um batik qualquer, compra sem reclamar o preço e foge dali. É uma estratégia quase sempre eficaz, pelo menos com os turistas mais desavisados e cheios de medo dos assaltos e da violência da cidade.
Feliciano, que é só artista também costuma ir, mas não vai vender nada. Ele gosta de subir até ao Jardim Tunduru e sentar-se por lá tranquilamente a ler. Se chover sobe mais um pouco e vai até ao Centro Fanco-Moçambicano, mas do que ele gosta mesmo é de ficar no jardim no meio do verde e de todas aquelas árvores e plantas dos quatro cantos do mundo. Um dia, os outros rapazes estranhando as suas ausências prolongadas e pensando que havia rabo de saias naquela história resolveram segui-lo e quando perceberam que estava simplesmente a ler começaram a gozar com ele até que Feliciano lhes propôs sentarem-se em volta dele e ouvirem a história que estava a ler. A partir daquele dia, as manhãs de sábado tornaram-se sagradas para todos. Um romance podia demorar meses a ser lido em voz alta e o grupo esperava ancioso sábado, após sábado para conhecer o resto da história. As vendas ressentiram-se e Mestre Neto reclamava, mas a culpa era sempre dos turistas que não apareciam, ou da concorrência que era muita… e a vida continuou como sempre.


A inauguração da exposição tinha atraído muito mais gente do que se esperara. A sala estava cheia e as pessoas, muito elegantes nos seus trajes de cerimónia, conversavam alegremente enquanto apreciavam as fotografias expostas e aguardavam o momento solene da entrega de prémios. O evento era famoso e reunia sempre o trabalho de alguns dos fotógrafos mais proeminentes do país, que se tinham destacado com trabalhos sobre o continente africano. Em destaque, no meio da sala encontrava-se a fotografia vencedora do primeiro prémio. As pessoas admiravam-na com um ar enternecido, sorriam muito e sussurravam entre si. Tomás Valentim era o grande artista da noite e estava rodeado por admiradores que não paravam de elogiar aquele trabalho.
Finalmente deram início à cerimónia de entrega de prémios e o presidente da Associação Nacional de Fotógrafos Profissionais colocou nas mãos de Tomás Valentim a máquina fotográfica de cristal ao que se seguiram inúmeros aplausos e a conferência de imprensa.

- Sr. Tomás Valentim, quando viu esta imagem, soube logo que podia tornar-se numa obra de arte? – perguntou entusiasmada uma jornalista na primeira fila.
- Essa é uma pergunta difícil… não sei… sabia com toda a certeza que estava perante um quadro vivo comovente e único…
- Teve oportunidade de conhecer pessoalmente algum dos intervenientes desta situação? – perguntou outro jornalista?
- Não, confesso que não me atrevi a interromper aquele momento sublime e limitei-me a imortalizá-lo.
- Sr. Tomás Valentim, acho que todos nós teremos a nossa interpretação pessoal para o que está acontecer nesta imagem, mas gostava de conhecer a sua. Você que esteve ali, tão perto, diga-nos… o que é que nós estamos a ver?
- Estamos com certeza perante um grupo de rapazes que representa a energia, a potencialidade e o futuro promissor de um país extraordinário. Um país onde nem todos os jovens têm de trabalhar, onde muitos deles se formam com qualidade e discutem novas ideias. Quem sabe se não estarão entre estes jovens alguns dos futuros intelectuais e dirigentes de Moçambique?

A conferência de imprensa continuou, com o artista a falar da sua obra e da sua carreira que chegava agora a um momento de consagração. O público e os jornalistas ouviam encantados as suas palavras e não tiravam os olhos da enorme fotografia pendurada por trás de Tomás Valentim onde se podia ver um banco de jardim onde um jovem com um livro na mão discursava perante um grupo de outros jovens que o rodeavam concentrados, descontraidamente sentados a seu lado ou no chão à sua frente. Ao lado, o título da obra :“Tertúlia no Jardim de Tunduru. (Maputo, 2006)”.