A caminho do Lar para visitar o meu avô, tentava apaziguar o espírito e o sentimento de culpa que me atormentava por não o ver mais vezes. Enquanto descia a Rua da Boavista e me aproximava da Carvalhosa o meu estômago ia-se apertando e na minha cabeça abundavam os pensamentos tristes. Éramos os dois toda a nossa família. Vivemos sempre juntos até que um dia, de um momento para o outro, perdi o meu avô. A culpa foi de um AVC que lhe desarranjou a mente e lhe debilitou o corpo tornando-o dependente e exigindo cuidados constantes. Desde esse dia o meu avô vive no passado, que lembra com extraordinária exactidão. Revive vezes sem conta as alegrias, tristezas, tragédias e emoções que o marcaram ao longo dos seus setenta e dois anos de vida e é incapaz, durante a maior parte do tempo, de se lembrar do que fez há cinco minutos. É capaz de acender o fogão para fazer um chá e provocar um incêndio, de abrir a água para o banho e ver-se a braços com uma inundação, de entrar no autocarro para ir ler o jornal ao Palácio e depois não se lembrar qual o autocarro que o traz de volta para casa. Por vezes tem momentos de lucidez. Eu desço a rua da Boavista a rezar para que a minha visita coincida sempre com um desses momentos. É muito doloroso ver o meu avô naquela casa, perdido nas suas memórias, morto para mim que já não o reconheço. O meu avô, um homem forte, encorpado, de olhos azuis muito vivos e cabeça sempre erguida, que cuidou de mim, que me ensinou tudo o que sei e que enfrentou com coragem todos os desafios que a vida lhe lançou, agora não é mais que um homem à espera da morte.
Ia perdido nestes pensamentos quando finalmente cheguei ao Lar. Encontrei o meu avô sentado num cadeirão no jardim, a dormitar. Ele tinha cada vez mais dificuldade em movimentar-se, com o corpo a ceder aos anos e à doença, mas obrigava sempre os funcionários do Lar a colocarem-no no jardim. Nunca gostou de estar fechado, de espaços pequenos e a doença não lhe curou a claustrofobia.
- Olá avô! Que belo dia para se estar no jardim. Como te sentes? – perguntei eu angustiado tentado perscrutar no rosto dele se aquele era um dia de lucidez.
- João, meu filho, ainda bem que chegaste. Precisamos ir ao Huambo!
- O quê… mas avô… - comecei eu a balbuciar invadido por uma tristeza infinita.
- Não João, não estou doido. Estou com saudades. Quero acabar a vida na minha terra, visitar o túmulo dos meus antepassados, os lugares da minha juventude… quero voltar para nossa casa João.
- Mas avô, tu estás doente, a viagem é longa… não ias aguentar.
Caiu sobre nós um silêncio inquietante e eu sentia a mente dele em luta com o corpo debilitado, a estudar todas as possibilidades, a analisar o assunto de todas as perspectivas para depois me apresentar novos argumentos. É assim o meu avô.
- João, promete-me uma coisa: quando eu partir tu partes também. Partimos juntos para outro mundo. Eu vou ter com todos os que amei, que me aguardam do outro lado, o teu pai, a minha doce Alice… e tu voltas a Angola, ao Huambo, à tua terra. Voltas lá nem que seja só para encontrares essa parte da tua história e depois segues com a tua vida.
- Prometo avô – disse eu muito sério, cheio de medo de o perder e de me lançar naquela empreitada.
- E agora, meu filho, vai buscar a cadeira de rodas e leva-me ao Largo do Viriato – disse ele cheio de energia e bem disposto – que o jacarandá deve estar florido e faz-me sentir mais perto de casa.
O sol brilha no Huambo. É sempre assim. Sol e calor. Estamos na época dos morangos e mamões, do calor seco e do pó vermelho, dos jacarandás azuis que pintam o céu da cidade.
O meu avô partiu há 3 meses. O seu velho coração parou de bater durante o sono e ele partiu em paz para uma viagem que aguardava há muito tempo. A minha viagem demorou a preparar. Eu nunca estive preparado para a fazer. Fui para Portugal ainda criança, pela mão do meu avô. Ao contrário da maioria dos “retornados” não tínhamos família, nem raízes no velho continente. O meu tetravô chegou a Angola no início do século, fugido de uma guerra qualquer e determinado a voltar as costas à pátria e instalou-se no Huambo desde o dia em que a cidade, então Nova Lisboa, foi construída com o intuito de ser capital do país. A história trocou-lhe as voltas e retirou-lhe esse protagonismo mas a cidade cresceu e transformou-se no lar da nossa família. O meu tetravô viveu muitos anos e pôde ver o seu “império” familiar crescer durante quase um século, um império de amor e afectos que se estendeu a toda a província. Cresci a ouvir o meu avô contar histórias desse império, do irmão dele que vivia na Luvemba e casara com uma filha do Soba, das idas ao Bailundo para visitar os avós, dos tios da Caála... histórias do jango e da Ombala como ele dizia ao som do umbundo, uma língua que ele insistia em ensinar-me quando eu era criança. O meu avô dizia sempre que a cor da pele não definia as nossas origens e que a nossa família de brancos e mulatos era angolana até à alma. Ele perdeu tudo entre duas guerras, a colonial e a civil. Perdeu coisas, propriedades, dinheiro, mas perdeu sobretudo o império de afectos, as pessoas que amava e quando já só éramos os dois, guardou no coração o outro amor que lhe restava, o amor pelo Huambo e partiu comigo para um país desconhecido.
Eu cresci e estudei sem grande convicção, que nunca soube o que queria fazer da vida, mas obrigado pelo sentido do dever imposto pelo meu avô. Transformei-me num homem tranquilo, sem grandes sonhos nem projectos, sem grandes amigos nem grandes paixões. Senti-me sempre seguro com coisas simples. A paixão e arrebatamento do meu avô pela vida bastavam-me. Vivia esses sentimentos através dele mas no meu pequeno mundo eram as pequenas coisas do quotidiano, a disciplina do meu dia, os meus hábitos inalteráveis que me norteavam e me davam serenidade.
Cumprir a promessa feita ao meu avô e partir foi a maior aventura da minha vida. Estou no Huambo há duas semanas. A guerra acabou há apenas três anos e os contrastes que se vivem e se sentem por aqui provocam-me tumultos que nunca antes senti. Tudo é grande, imenso, avassalador. A cidade está a renascer. A reconstrução parece imparável e há uma dinâmica de esperança que emociona. Mas há também as histórias da guerra que já não consigo ouvir, os escombros e as ruínas, as marcas dos ataques aéreos e de balas que perfuraram a alma dos edifícios da cidade, os mortos que ainda estão sepultados nos quintais, os órfãos, os loucos, os miseráveis, as minas que nos travam os passos, a falta de luz e água potável, a falta de saneamento e o lixo. A minha salvação são os jacarandás, que me lembram o meu avô e a força dele. O Huambo está coberto de flores azuis que dão cor ao céu e que me fazem sentir, de alguma forma, em casa.
Disseram-me que a época das chuvas está quase a chegar e que a paisagem mudará completamente. Tudo ficará verde, as mangas vão amadurecer, o ar vai adoçar com o cheiro a terra molhada e eu decidi ficar por cá mais tempo para assistir à transformação.
30/07/07
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9 comentários:
Ai rapariga, estar a ler isto enquanto ouço essa música tão triste e tão bonita que tens aí em baixo... num tá fácil! :P :)
Continua que vais pelo bom caminho. ;)
:) Obrigada amiga! És sempre a minha primeira leitora e eu já fico à espera dos teus bitaites :p.
Foi a primeira história de Angola que saiu do forno. Foi mais duro lá estar, é mais duro arrancar estas histórias de dentro de mim. Fico feliz por teres gostado :)
Beijinhos
que bela triste história! vieram-me lagrimas aos olhos, só consigo pensar o que vou eu sentir ao regressar à minha terra?! fico sufocada... coloquei logo o ismael a tocar (cd todo) que incrivelmente já não ouvia há muito tempo... tão belo e tão a condizer com a tua história... é linda, não tenho mais palavras... parabéns :) beijinhos
Também gosto da música nova que puseste aqui ao lado. :D Mas confesso que estou viciada na do Ismael, e a culpa é toda tua, raios! :P LOL! Já a ouvi não sei quantas vezes. :P :D
Lol! É mesmo assim :) Mas olha já tens mais opções, bistes? Bistes?
Ando como um ceguinho em campo minado a aprender a fazer estas coisas :P. Agora que descobri como é que coloco a minha música, a dos meus CDs... descobri que não tenho plug in instalado para gravar para mp3. Dito assim até parece que eu sei o que é o raio do plug in.. enfim desconfio, mas faz-se tarde e amanhã de manhã quero ir à praia. Num ficou mal, depois continuo a melhorar a coisa :)
O que é que têm as histórias de avós e netos que me põem o coração do tamanho de uma ervilha? Será por faltar a geração do meio, aquela que deveria assegurar conforto e amparo às outras duas? Nestas histórias parece-me sempre que às crianças é exigido que cresçam muito depressa e que aos velhos se pede que voltem a ser moços. Julgo que são esses dois sacrifícios, o da infância e o da velhice, que me comovem. Como aqui, nesta história.
Escreves muito bem. Muito interessante, o teu blog.
Tenho África no coração, nas veias, e um dia la voltar nem que seja o ar respirar... também não tenho la nada e ao contrario tenho tudo em Portugal...
Mas Angola esta-me no sangue cresci a ouvir sobre aquela terra, sobre aquele povo... não tenho nenhuma outra ligação que não seja o local de nascimento. Tenho África no sangue!
Gostei muito de te ler.
Ate breve.
Obrigada e bem-vinda!
Há ligações fortes sim senhora e quando assim é é preciso ir, partir, o que for preciso :).
Abraço e volta sempre.
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