08/07/07

Ângelo e Ângela

Chovia torrencialmente. Parecia que o mundo se preparava para o Juízo Final. Era impossível andar em linha recta tal era a violência do vento que se aliava à chuva para dificultar os passos. Era preciso muito azar para o automóvel ter avariado naquele exacto momento. Quando percebeu que o velho Alfa Romeo não ia dar nem mais um passo, Ângelo olhou em seu redor, desesperado, como se esperasse um sinal divino que lhe desse uma pista sobre o que fazer a seguir. Viu um velho café do outro lado da rua, iluminado por uma luz ténue, amarelada, que naquele fim de tarde tenebroso lhe pareceu o lugar mais aprazível do mundo. Lá dentro, a maioria das mesas estavam vazias, mas as poucas pessoas que lá estavam pareciam tão alheadas do mundo exterior enquanto conversavam ou liam calmamente o jornal que esta visão lhe transmitiu uma sensação de conforto imediato. Resolveu sair do automóvel e atravessou a rua, como pôde, rompendo a cortina de chuva que o fustigava. Não via quase nada e tentava simplesmente avançar em linha recta até à porta do café. De repente, uma dor aguda quebrou-lhe a concentração e uma mulher que saíra determinada do café pedia-lhe desculpa aos berros, ainda agarrada ao puxador da porta que o atingira violentamente na cara. Ângelo mal a ouvia com o barulho ensurdecedor da chuva e do vento, tentou endireitar o corpo encharcado e fazer um gesto com a mão que lhe indicasse que ele estava bem, que não tinha sido nada e nessa altura viu-a. E foi atingido por uma dor ainda mais insuportável, uma dor da alma que o arrancou daquele lugar e o atirou para longe, para outro lugar há 18 anos atrás.

- Bom dia!... Não, não te mexas. Deixa-me olhar bem para ti, estás tão linda, serena com os cabelos espalhados assim na almofada. Quero decorar este momento – disse ele enquanto sorria.
- Ângelo! Não olhes para mim assim, assustas-me e… e eu tenho de levantar-me!
- És o amor da minha vida Ângela, nunca me canso de olhar para ti. Nunca vou esquecer o dia em que nos conhecemos. Foi o dia mais feliz da minha vida.
- E agora estamos aqui no fim do mundo, a viver numa casa abandonada em frente ao mar sem saber quando podemos ser expulsos, quase sem nada para comer e no meio de uma guerra que não é nossa!
Ele agarrou-lhe o braço e puxou-a de encontro ao peito num abraço forte e cheio de ternura.
- Só precisamos de estar juntos para sermos felizes. Olha bem lá para fora. Vês algum sinal de guerra? Eu só vejo o mar azul e tranquilo a dar-nos os bons dias e o mundo inteiro a olhar para nós com inveja. Os últimos dois meses, desde que chegámos, têm sido perfeitos.
- Ângelo! Pára! Hoje fiquei de ir ter com a Maria que está em casa sozinha com os miúdos e desesperada sem notícias do marido.
- E o que é que eu vou fazer no paraíso sem ti? Não gosto de ficar aqui sozinho.
- Porque raio não vês a realidade à nossa volta? Não podemos viver a vida toda como se estivéssemos de férias. O mundo está a desmoronar-se à nossa volta!
- Eu não quero estar longe de ti nem um segundo. Nós não precisamos de muita coisa… eu só preciso de ti. Nós saímos da Europa para ter uma vida diferente, para termos tempo, para nos amarmos…
Ela levantou-se, decidida, libertou-se do abraço que a segurava e saiu do quarto.

Ângelo atravessava apressado o corredor na direcção da biblioteca. Mal via onde punha os pés, carregado de livros, mas já sabia o caminho de cor. O curso de Filosofia não lhe dizia muito, mas na faculdade tinha descoberto outro mundo. Era um tipo popular, sempre bem disposto, optimista, sonhador. Defendia todas as causas nobres que lhe batiam à porta e acreditava piamente nelas. Ora eram os pandas em vias de extinção, ora era a fome em África, a desflorestação da Amazónia, o direito à autodeterminação de povos indígenas. Andava constantemente em campanha e acreditava que podia mudar o mundo. Naquele dia em particular preocupavam-no a existência do Apartheid e a segregação racial e sentia crescer dentro dele uma necessidade enorme de sair para o mundo e defender aquilo em que acreditava. Estava absorvido nestes pensamentos quando a porta da biblioteca se abre bruscamente contra ele atirando com todos os livros ao chão.
- Desculpa… desculpa… não te vi. Eu ajudo-te.
Ângelo que tentava apanhar os livros, olhou atordoado para aquela rapariga que lhe pedia desculpa num sussurro, muito corada.
- Não faz mal. Deixa.
E pegou-lhe no braço suavemente para ela se levantar e para poder vê-la.
- Como te chamas?
- Ângela.
Ele nunca se tinha sentido assim, o coração a bater disparado, as mãos suadas, o tempo parado à volta deles e aquele nome a ecoar repetidamente “Ângela”, “Ângela”.
- Desculpa… mas… tás bem? – perguntou ela
- Sim… nunca estive melhor. Hoje é o dia mais feliz da minha vida! – disse ele a sorrir.

Desde aquele dia ela passou a fazer parte da vida dele. Ou melhor, desde aquele dia conquistá-la tornou-se na principal causa de Ângelo. Não foi difícil. Ele era bonito e inteligente, alegre e tinha uma paixão por tudo o que o rodeava que o tornavam irresistível. Ela encantou-se com toda aquela energia, com a dimensão dos sonhos dele e rapidamente fizeram planos juntos. Ângelo queria ir viver para África, ter uma vida simples, ajudar as pessoas. Queria uma vida de aventuras, onde pudesse ser um personagem importante da história. Jamais se poderia imaginar numa vida de luta pelo dinheiro, pelo estatuto, fechado entre quatro paredes de uma sala de aula qualquer. Ela iria com ele. Acreditava nas mesmas coisas e, sobretudo, acreditava nele. Poucos meses depois de se conhecerem, largaram tudo e partiram.

- Você sente-se bem? – gritou ela novamente no meio da tempestade
Ângelo estremeceu. Voltou ao presente, olhou-a nos olhos e a custo, baixinho, pronunciou o nome dela.
- Meu Deus! Você tem a testa a sangrar – disse ela assustada enquanto agarrava com força pelo braço e o puxava para dentro do café.
- Como eu sou desastrada! O que eu fui fazer. Sente-se aqui e deixe-me ver esse ferimento.
- Ângela! – disse ele bruscamente enquanto lhe agarrava a mão com que ela lhe tocava a testa. – Porque te foste embora naquele dia?
Ela ficou petrificada. Olhou para o rosto dele tentando reconhecer os traços que lhe estavam gravados na memória. Não conseguia articular uma palavra e sentia o mundo inteiro a girar à volta dela.
- Ângela! Eu preciso de saber. Diz-me só porque saíste de casa sem deixar rasto e me abandonaste?... Deves-me esta explicação… há quase vinte anos.
De repente, ela endireitou-se na cadeira, desviou o olhar e soltou-se.
- Desculpe, o senhor deve estar a confundir-me com alguém – disse enquanto olhava para o relógio.
- Lamento muito tê-lo magoado, mas agora tenho de ir.
- Não! Não te vou deixar sair sem me dizeres…- e levantou-se para ir atrás dela.
- Já lhe disse que me está a confundir com alguém – disse ela saindo disparada do café.
- Ângela, eu era capaz de te reconhecer até no Inferno! Diz-me porque te foste embora! Diz-me e depois vai-te embora de vez, mas diz-me… porquê? – gritou-lhe desesperado.
A chuva era cada vez mais intensa, já anoitecera e não havia luz eléctrica. O céu era agora iluminado por relâmpagos persistentes e estavam os dois encharcados, sozinhos no meio da rua.
- Diz-me! – gritou Ângelo desesperado com todas as suas forças.
Ela começou a recuar. Queria fugir dali, mas aquele homem não a deixava partir.
- Amavas-me demais! – gritou Ângela com raiva e lágrimas nos olhos enquanto se afastava no meio da escuridão.
Ele não se moveu. Não tentou alcançá-la. Ficou a vê-la partir até desaparecer na noite.

5 comentários:

Anónimo disse...

... African Queen ... parece-me bem !!!

A primeira história é gira.

Amores/desamores ...

Esperemos pela próxima...

...esta febre bloguista começa a assutar-me pois confesso que goste é de estar com as pessoas e o tempo vai sendo cada vez mais escasso...

Abraço

Anónimo disse...

intenso
existencial
reflexão

I_onlySmoke3 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
I_onlySmoke3 disse...

Este já está.Foi o primeiro que imprimi. No início pensei: Estas coisas não acontecem, mas depois de refletir,lembrei-me de situações algo identicas, reconsiderei e aí sim, estava preparado para continuar a ler e...emocionar-me. Parabéns amiga. Bjinho

African Queen disse...

Obrigada Marta, amigo... tou a ver que começaram pelo primeiro :) Ainda bem que gostaram. E sim, meu querido, esta história aconteceu mesmo, no essencial... aliás na realidade foi mais incrível do que aqui está descrito. Como diz logo em cima... a realidade bate a ficção aos pontos.
Voltem sempre. Beijinhos