Quando o correio chegou, vivia-se uma manhã ordinária, sem grande agitação no hospital. Longe da azáfama e do caos dos hospitais públicos, aqui o ambiente era tranquilo, desinfectado e silencioso. Na recepção imponente coberta de mármore e obras de arte, o carteiro tinha por hábito não só entregar, mas também ajudar a recepcionista a separar a correspondência em pequenos montes que se espalhavam pelo balcão, na esperança de lhe conquistar um sorriso que funcionava como uma espécie de barómetro para prever o curso desse dia. Se, por acaso ela lhe sorria, ele iluminava-se e sentia-se o homem mais feliz do mundo. Acreditava que o dia só lhe poderia correr bem, cantava, espalhava o bom humor que lhe sobejava e à noite, quando deitava a cabeça na almofada fechava olhos e sonhava que a abraçava, que ela se encolhia nos seus braços e lhe devolvia um sorriso ainda mais doce. Habitualmente ela mal retirava os olhos da correspondência para olhar para ele e os seus gestos, mecânicos, na ânsia de organizar o balcão e alinhar os montes de correspondência a distribuir, raramente incluíam sorrisos. Um seco “Obrigada, Sr. Martins. Até amanhã.” colocava um ponto final naquela colaboração quotidiana e ele saía cabisbaixo depois de a ver desaparecer no corredor com dezenas de cartas nos braços, com a certeza de que ia ter um dia triste, azarado, solitário.
- Bom dia Sr. doutor, tem aqui a sua correspondência – disse ela e saiu do consultório irritada, como sempre, com a falta de cortesia do director, um homem mal-humorado, seco, que a ignorava diariamente e nem sequer a cumprimentava.
Afonso Soares afastou-se da janela, pegou na sua chávena de café, já quase frio e sentou-se na secretária. Olhou surpreendido para o monte de cartas na sua frente, como se elas se tivessem materializado naquele momento e depois reparou numa caixa que estava mesmo ao lado. Abriu-a com curiosidade. Não tinha remetente, nem carimbo dos correios, parecia ter sido entregue pessoalmente. Lá dentro, um pequeno bonsai ansiava por luz e quando o colocou em cima da mesa, na sua frente, encostou-se lentamente na cadeira e ficou a mirá-lo. Era um imbondeiro, uma árvore extraordinária que quando adulta pode atingir os vinte metros de altura e dez de diâmetro, a árvore da vida, um dos símbolos de África. Vê-la em miniatura, ali na sua frente, tantos anos depois de ter olhado uma pela última vez, pareceu-lhe estranho, irreal. Voltou a pegar na caixa à procura de mais qualquer coisa que lhe explicasse aquela encomenda estranha. Encontrou um pequeno cartão, escrito à mão, com caligrafia delicada, onde podia ler-se apenas “Obrigada”. Intrigado, franziu a testa, voltou a remexer na caixa, virou o cartão mas não encontrou mais nenhuma pista.
Entretanto entra repentinamente no consultório o seu sócio.
- Afonso, aquele investimento que fizemos na nova ala… - começou ele a dizer exaltado.
- Sabes que árvore é esta, Raul? – pergunta-lhe sem tirar os olhos do bonsai.
- Mas... que raio…sei lá! Não é uma daquelas árvores japonesas!? Mas o que é que isso interessa? Afonso, estamos com problemas sérios para resolver, porque raio estás aí a olhar para um vaso?
- É um imbondeiro Raul. Uma miniatura de um imbondeiro, a árvore da vida. Uma árvore sagrada em muitos lugares de África, que muitos acreditam facilitar a comunicação entre os vivos e os mortos. Ninguém sabe a idade dos imbondeiros. Ao contrário das outras árvores elas crescem ocas e não formam os anéis que nos permitem detectar a sua idade…
- Muito bem! Eu aqui cheio de problemas para resolver e tu a dares aulas de botânica. Estou a perceber… fez-te recordar o grande aventureiro Afonso Soares. Olha, eu não sei como essa porcaria veio aqui parar, mas é bom que te lembres que o grande aventureiro perdeu um pé por causa de uma mina e quase ia perdendo a vida, passou dois anos em coma e quando finalmente acordou resolveu ser um tipo responsável, abriu este hospital comigo e deixou para trás o grande viajante, aventureiro, salvador do mundo. Bolas Afonso! Estamos cheios de dívidas. Preciso da tua ajuda para resolver uma série de coisas e tu nem me ouves!
- Deixa-me sozinho alguns minutos. Só alguns minutos. Eu já vou ter contigo. Prometo – disse Afonso sem tirar os olhos do imbondeiro.
Raul deu meia volta e saiu furioso do consultório batendo com a porta. Entretanto, o telefone começou a tocar.
- Sr. doutor, é a sua esposa. Diz que não tem o telemóvel ligado e ela precisa fala urgentemente consigo – diz a recepcionista do outro lado da linha.
- Diga-lhe que estou numa reunião. Não quero falar com ela agora – disse Afonso indiferente.
- Mas… Sr. doutor, a sua esposa diz que é por causa do seu filho. Está muito aflita! – Insistiu ela mais uma vez.
- Passe a chamada – retorquiu, seco.
- Afonso, meu Deus, não consigo falar contigo e estou desesperada. O Filipe teve uma crise qualquer na escola, perdeu a cabeça, partiu tudo, partiu a sala de aula toda, agrediu colegas e professores e levaram-no para um hospital psiquiátrico porque estava incontrolável. Eu não sei o que fazer. Preciso de ti – disse ela desesperada, a chorar.
- Controla-te que assim não resolves nada. Já vou ter contigo – respondeu enervado.
Há dois dias que não ia a casa. Ia ficando pelo hospital e quando dava conta verificava que já era muito mais que um negócio, um trabalho, tinha-se transformado numa espécie de refúgio também.
Muito longe dali, da cidade, do burburinho das pessoas, da poluição e dos carros, numa pequena praia do Indico, destaca-se na paisagem uma pequena casa caiada rodeada por um jardim de cortar a respiração. Um verdadeiro jardim do Éden, repleto de árvores, flores e todo o tipo de plantas. No alpendre, voltado para o mar, uma mulher dorme tranquilamente embalada por uma cama de rede. É jovem ainda, não terá mais de quarenta anos, mas tem um ar doente e macilento como se a vida estivesse aos poucos a despedir-se dela.
- Isabel, acorde… vamos lá, que está na hora do remédio – disse suavemente uma mulher enquanto lhe tocava no ombro.
- Tive um sonho bonito – respondeu ela a sorrir enquanto se espreguiçava. – Onde estão as crianças? Já voltaram da escola?
- Sim senhora. Eu mesma fui buscá-los depois de arrumar a cozinha e agora a Dila foi com eles na praia – disse-lhe enquanto ajudava Isabel a erguer-se para tomar o medicamento.
- E o meu amor, Dosinda? Na estufa, como é costume? – perguntou a sorrir entre duas colheres de xarope.
- Sim e já veio espreitá-la várias vezes mas voltou. Está a fazer a poda dos bonsais.
- Estás a ver. Está tudo perfeito para a minha partida, preciso só de falar com o Velho Tembe. Pedes-lhe para vir aqui, por favor?
- Claro Isabel. Mas não gosto quando você fala assim. Você ainda vai curar. Tem de lutar pela vida – respondeu a mulher com lágrimas nos olhos.
- Minha querida Dosinda, já falamos sobre isso. Eu tenho um tumor maligno incurável e não quero passar os dias que me restam enfiada num hospital a ser retalhada a cada nova cirurgia só para prolongar um pouco a vida, longe de tudo e todos que amo. Eu tive uma boa vida. Quero ter uma boa morte também. As ervas e xaropes do Velho Tembe ajudam-me a suportar a dor e a ter ânimo. Mas vai lá chamá-lo, por favor, preciso que ele me ajude a fazer só mais uma coisa.
Afonso entrou no consultório ainda de madrugada. Não conseguia dormir e resolvera ir trabalhar. O filho já estava em casa, sob forte medicação e com um diagnóstico preocupante. Uma criança de dez anos, incapaz de controlar a agressividade e a raiva; incapaz de comunicar. Ele cruzou os braços sobre a secretária, pousou a cabeça e começou a chorar infeliz, impotente.
De repente sentiu que algo lhe rodeava os tornozelos, as pernas e que o ia aprisionando. Abriu os olhos e aterrorizado viu na penumbra a sombra de um imbondeiro que se agigantava dentro daquela sala e cujas raízes o prendiam e invadiam. De repente sentiu-se arrancado à cadeira onde estava sentado e em pânico, enquanto se contorcia viu-se ser levantado no ar e atirado para dentro da árvore gigante. Caiu num chão de terra vermelha, sentiu um calor pesado e mal conseguia abrir os olhos com tanta luz. Ouvia um tiroteio intenso que se aproximava cada vez mais, sentia uma agitação brutal à volta dele, o pó a invadir-lhe os pulmões e quando se levantou e olhou em volta encarou um cenário terrível de gente já quase sem vida, esqueléticos, doentes, que corriam para se esconder no mato e fugir ao tiroteio que os perseguia. Afonso ficou parado, paralisado, a olhar. Já tinha estado ali. Já tinha vivido aquilo… tudo aquilo que ele queria esquecer. De repente viu soldados a aproximarem-se, a disparar e algumas pessoas a começar a cair por terra. Viu uma mãe ser atingida na cabeça e lutar por cair de joelhos e depois para a frente para não esmagar o filho que trazia nas costas, preso numa capulana e então viu um homem que saiu como um felino enfurecido do meio do mato e começou a correr contra a corrente, na direcção dos soldados até ficar ao alcance das balas que choviam à sua volta, só para soltar aquele bebé das costas da mãe e salvá-lo. Afonso continuou parado no meio daquele cenário aterrorizador, perplexo, a ver-se a si próprio, há quinze anos atrás, a reviver outra vida. Confuso e perturbado Afonso vê-se então a si próprio a correr como um louco com uma criança nos braços na sua direcção e quando este corre através de si como se ele não estivesse lá, como se não existisse, Afonso sente numa explosão sensorial todas as emoções daquele homem que corre com uma criança nos braços e tenta fechar os olhos e tapar os ouvidos para sair daquele lugar.
Então deixa de ouvir o ruído das balas, as pessoas a correr, os gritos e abre lentamente os olhos. Está deitado sobre a secretária. O dia já nasceu e os primeiros raios de sol invadem o consultório. Afonso coloca as mãos na cabeça e encosta-se para trás na cadeira ainda com o coração acelerado. À sua frente está o pequeno imbondeiro com um cartão encostado ao tronco. Ele olha-o com estranheza. Jurava que o bonsai tinha vindo apenas com um cartão a dizer “obrigada”. E agora ali estava outro, com a mesma caligrafia, onde podia ler-se “coragem”.
- Isabel, você sabe que isto vai precisar de muita energia sua, que você não tem porque a vida está lhe abandonando – disse o Velho Tembe preocupado.
- Preciso fazer isto antes de partir. Devo a um homem tudo aquilo que sou e tudo aquilo que tenho. Tudo aquilo que me permitiu ser feliz e despedir-me da vida sem ressentimentos eu ganhei de um homem com quem passei uma noite, uma única noite na vida e do qual me afastei sem sequer me despedir.
- E não chega teres-lhe enviado um bonsai e um cartão a agradecer? – perguntou o homem que entretanto se aproximou deles.
- Meu amor, estás com ciúmes – disse Isabel a sorrir. – Mas não devias. Eu sinto obrigação de fazer isto pelo tanto que ele me deu. Eu estava perdida quando o conheci, destroçada, no meio de uma guerra que eu já nem conseguia descrever.
- Isabel, partilha com ele essa história, conta tudo para ele entender o que você quer fazer, minha filha e te ajudar também – disse o Velho Tembe, sábio como sempre.
- Eu vou continuar nossas combinações e depois volto para te ver – despediu-se o Velho enquanto se afastava.
- Queres ouvir, então? – perguntou-lhe Isabel enquanto lhe acariciava o rosto.
- Claro, se é importante para ti, se queres voltar a esses lugares da tua memória… - respondeu ele.
- Aqueles foram os piores tempos da guerra em Angola. Estávamos em 93 o Huambo foi cercado pela Unita durante 56 dias e ocupado em Março. Meses depois a cidade foi bombardeada pelas forças governamentais, que a conquistaram. Não é difícil imaginar o que foram esses meses. Toda a loucura da guerra, tudo o que de pior existe nos seres humanos à solta, descontrolado. Eu era uma miúda que queria ser jornalista, mas acho que tinha ido para lá porque queria morrer. Foi uma fase muito amarga para mim, muito dura. Fui para o epicentro da guerra como repórter free lancer. Vi tudo o que não se deve jamais ver. Um dia estava a caminho de um campo de refugiados quando o jipe que seguia à frente do meu foi atingido por uma mina. As viaturas ficaram destruídas e os que sobrevivemos tínhamos que seguir a pé até ao campo. Dois dias depois, esfomeados, feridos, desorientados começamos a ouvir tiros de metralhadora e percebemos que havia uma aldeia à frente que estava a ser atacada. Quando voltou o silêncio aproximamo-nos. Já não se viam soldados. De repente ouvi um choro de criança, olhei para o lado e vi uma mulher, que mais parecia um fantasma de si própria, pegar num bebé e coloca-lo ao peito para lhe dar de mamar. Lembro-me que me apeteceu muito chorar quando vi aquela cena mas depois… depois, saído do nada vejo um homem enlouquecido, que pegou na criança e a arrancou ao seio da mãe e que se atirou àquela mulher, agarrando-lhe os seios, subjugando-a com o peso do seu corpo. Julguei que ia assistir a mais uma de tantas violações da guerra. Olhei para a criança que no chão não parava de chorar, olhei para o soldado morto ao meu lado, retirei-lhe a arma da mão, aproximei-me deles e disparei sobre o homem com raiva. Quando o homem tombou percebi que lhe corria leite pelos cantos da boca. A mulher olhou para mim assustada, pegou na criança e fugiu a correr. Não tinha sido uma tentativa de violação, o homem estava esfomeado e do corpo daquela mulher tomou-lhe apenas o leite. Deixei cair a arma, gritei desesperada, cai de joelhos no chão e então começou a chover e eu fiquei ali, no meio da lama, não sei por quanto tempo, vazia.
Foi então que conheci o Afonso. Era médico no campo de refugiados, que afinal era perto da aldeia atacada e tinham ouvido o ataque e vindo ver se havia sobreviventes que pudessem ajudar. Era contra todas as normas de segurança, mas ele não se importava. Encontrou-me no mesmo local onde cai no meio da lama. Não tinha mais do que uns arranhões no corpo e estava suja e encharcada mas tinha a alma ferida de morte. Quando anoiteceu, depois de ter tratado dos doentes mais graves, veio ver-me. Eu não falava. Aqueceu água, despiu-me, lavou-me, deu-me alguma roupa confortável e limpa, fez-me café, olhou bem dentro dos meus olhos, abraçou-me com ternura, deu-me a mão e arrastou-me para fora da tenda, para fora do campo. Lembro-me que estava uma noite escura e de repente surge na minha frente um imbondeiro enorme a assombrar a noite. O Afonso estendeu uma capulana no chão, sentou-se e disse-me muito sério que já sabia diagnosticar a minha doença. Segundo ele sofria de “Pesada Escuridão”, ou seja andava há tempo de mais a ver cenas de terror, infelicidade, tristeza, violência e precisava apenas de ver outras tantas coisas belas, alegres que me tocassem a alma. Lembro-me de olhar para ele e achar que era louco, que não havia ninguém saudável naquele lugar. Então ele disse-me que tinha a mesma doença que eu em estado crónico e que a única maneira de a tratar era estar atento à humanidade que florescia até nos momentos piores ou então ir até ao imbondeiro, deitar-se a olhar as estrelas. Aquele imbondeiro já tinha vivido tanto, tantas coisas boas e más que lhe dava uma sensação de conforto indescritível. Dava-lhe a certeza de tudo ser passageiro menos aquela árvore. E depois a visão das estrelas na escuridão reforçavam ainda mais aquele conforto… havia luz, algures, mesmo que ali se vivesse na escuridão mais profunda. A determinada altura dei-lhe a mão, acariciei-lhe o rosto e beijei-o. Abraçamo-nos com doçura e fizemos amor como quem quer dar vida ao outro. Quando acordei, nos braços dele ao amanhecer, sabia que não podia ficar ali. Estava frágil, era muito fácil ficar encantada por aquele homem terno. Sabia que tinha de encontrar o meu caminho sozinha. Sabia, a partir daquele dia, que há sempre luz até na noite mais escura e que mesmo no meio da loucura, da maior desumanidade é possível encontrar amor, ternura, beleza. Deixei-o enquanto dormia e chegada ao campo apanhei boleia de uma coluna humanitária da Cruz Vermelha que saia do Huambo.
- E o que queres fazer, Isabel? Eu ajudo-te mas não quero que te prejudiques. Isso Não! – disse-lhe com carinho.
- Meu amor, eu preciso apenas que sejas forte, que entendas o que está acontecer. Não lamentes ter menos tempo do que gostarias comigo. Pensa apenas, na enorme felicidade que foi termos tido a oportunidade de partilhar o mesmo tempo e o mesmo espaço neste universo imenso.
- Bom dia, Sr. doutor, a sua correspondência – disse-lhe a recepcionista e ia já a sair do consultório sem esperar resposta quando Afonso a chamou.
- Joana, leve-me este bonsai daqui para fora. Leve-o para a recepção, para sua casa, deite ao lixo mas não quero voltar a vê-lo – disse-lhe num tom decidido.
- Está a falar desta plantinha na sua secretária? – perguntou ela apontando, a medo.
- Vê aqui mais algum bonsai!? Tire-me isso da frente e desapareça também… já! – gritou.
“Grosso! Mal educado!” pensou ela enquanto pegava na planta e saia quase a correr do consultório.
Era uma planta esquisita, pensou a Joana, mas era pequenina e ali, naquela recepção enorme ia ficar deslocada. Resolveu levá-la para casa. Arranjou um cantinho simpático para a acomodar, ao lado do sofá e instalou-se, sozinha como todas as noites, a ver televisão. Estava quase a dormitar, a ganhar coragem para se levantar e ir para a cama, quando sentiu a luz a falhar e se viu rodeada por escuridão. De repente viu uma sombra enorme a crescer à sua volta e um barulho ensurdecedor de coisas a partir, a cair ao chão. Começou a tremer de medo e agarrou-se à cabeça aos gritos quando o vidro da janela em frente se partiu em mil estilhaços e o vento entrou com violência na sala arrastando-a do sofá. Então viu as raízes de uma árvore enorme que lhe tomara a casa rodearem-lhe a cintura e a atirarem-na pela janela fora. Joana caiu aterrorizada numa superfície confortável e fofa. Olhou em volta e viu que estava numa cama, completamente encolhida, agarrada aos joelhos e que estava a ser abraçada por um homem. Voltou-se suavemente, ainda com receio e viu o carteiro. Viu-o a dormir sereno, tranquilo, com um sorriso nos lábios e sentiu-se bem naquele abraço.
- Afonso está alguém a tocar desenfreadamente à companhia, vais lá tu ver o que se passa? – perguntou-lhe a mulher ensonada.
- A esta hora? Já não se pode dormir sossegado? – resmungou enquanto se levantava e descia as escadas.
- Joana!? Mas o que é que se passa? Você está maluca? Já viu as horas?
- O Sr. doutor desculpe, mas esta planta é para si. Eu acho que ela está embruxada. Aconteceram coisas muito estranhas lá em casa… eu levei-a para casa, sabe?... enfim, coisas muito estranhas e depois… depois eu vi isto encostado à planta – e mostrou-lhe um pequeno bilhete onde podia ler-se numa caligrafia que já lhe era familiar “Afonso” – e juro que não sei de onde isso apareceu. Olhe, Sr. doutor essa planta é para si, está escrito, eu não a quero lá em casa. Tenha uma boa noite – e virou costas deixando Afonso perplexo a olhar o bonsai.
Levou-o para a sala, sentou-se a olhar para o imbondeiro em miniatura e começou a abanar a cabeça de incredulidade. Foi então que num ápice o imbondeiro se agigantou e o devorou novamente. Afonso voltou a cair na terra vermelha e então uma mulher deu-lhe a mão e arrastou-o por um caminho. Ele não conseguia ver-lhe o rosto e olhava em volta na expectativa de estar ver um cenário familiar, de se ver novamente a si próprio quinze anos atrás. Quando deu conta, era noite escura e aquela mulher continuou a arrastá-lo até chegarem a um imbondeiro, onde se deitaram a ver as estrelas.
- O que é que isto significa? Porque é que eu estou aqui? – perguntou confuso.
- Tens uma doença crónica, lembras-te? Pesada Escuridão. E há muito tempo que não tomas a medicação – disse-lhe Isabel a sorrir enquanto o olhava nos olhos.
- Eu lembro-me de vir a este lugar, para descansar, para me afastar do trabalho…
- Tu vinhas a este lugar para voltar a ter esperança, para acreditares que tudo faria algum sentido. Mas estiveste muito tempo em coma, sem ver as estrelas e esqueceste-te de voltar a procurar o teu sentido da vida.
- Agora lembro-me de ti… desapareceste, nunca soube sequer o teu nome – respondeu Afonso.
- Nessa noite salvaste-me mas eu tinha de partir sozinha, como fiz. Foi brusco talvez, mas não conseguiria faze-lo de outra maneira.
- O bonsai… foste tu? – perguntou Afonso curioso.
- Fui. Queria despedir-me de ti e agradecer-te. Sonhei contigo neste lugar numa noite de tempestade e sem o imbondeiro e senti que onde estivesses precisavas de recordar quem eras. Agora estou a ficar muito cansada. Tenho de ir. Fica aqui mais algum tempo, o tempo que precisares a olhar as estrelas e quando voltares a ver o bonsai lembra-te de mim.
Ela beijou-o na testa, levantou-se e desapareceu na noite escura. Afonso deitou-se novamente e sentiu regressar uma serenidade que o tinha abandonado há anos.
O quarto estava iluminado por dezenas de velas e cheio de flores. Parecia um jardim. O Velho Tembe, segurava numa das mãos de Isabel e cantava uma canção que parecia de embalar. O marido segurava-lhe na outra mão e acariciava-lhe os cabelos. À volta da cama as crianças, a Dila e a Dosinda rezavam em silêncio.
- Ela já partiu e conseguiu fazer tudo o que precisava antes de ir embora – disse o Velho Tembe com um sorriso sereno.
Muito longe dali, Afonso acordou no sofá quando o dia amanhecia. Lembrava confuso todas as emoções e acontecimentos dessa noite, sem perceber se tinha sonhado, se tinha sido real, quando olhou para o imbondeiro e viu o bonsai completamente florido e um bilhete encostado ao tronco. “As flores do imbondeiro, como a vida”. Afonso sorriu, sentiu-se iluminado.
- Bom dia Sr. doutor, tem aqui a sua correspondência – disse ela e saiu do consultório irritada, como sempre, com a falta de cortesia do director, um homem mal-humorado, seco, que a ignorava diariamente e nem sequer a cumprimentava.
Afonso Soares afastou-se da janela, pegou na sua chávena de café, já quase frio e sentou-se na secretária. Olhou surpreendido para o monte de cartas na sua frente, como se elas se tivessem materializado naquele momento e depois reparou numa caixa que estava mesmo ao lado. Abriu-a com curiosidade. Não tinha remetente, nem carimbo dos correios, parecia ter sido entregue pessoalmente. Lá dentro, um pequeno bonsai ansiava por luz e quando o colocou em cima da mesa, na sua frente, encostou-se lentamente na cadeira e ficou a mirá-lo. Era um imbondeiro, uma árvore extraordinária que quando adulta pode atingir os vinte metros de altura e dez de diâmetro, a árvore da vida, um dos símbolos de África. Vê-la em miniatura, ali na sua frente, tantos anos depois de ter olhado uma pela última vez, pareceu-lhe estranho, irreal. Voltou a pegar na caixa à procura de mais qualquer coisa que lhe explicasse aquela encomenda estranha. Encontrou um pequeno cartão, escrito à mão, com caligrafia delicada, onde podia ler-se apenas “Obrigada”. Intrigado, franziu a testa, voltou a remexer na caixa, virou o cartão mas não encontrou mais nenhuma pista.
Entretanto entra repentinamente no consultório o seu sócio.
- Afonso, aquele investimento que fizemos na nova ala… - começou ele a dizer exaltado.
- Sabes que árvore é esta, Raul? – pergunta-lhe sem tirar os olhos do bonsai.
- Mas... que raio…sei lá! Não é uma daquelas árvores japonesas!? Mas o que é que isso interessa? Afonso, estamos com problemas sérios para resolver, porque raio estás aí a olhar para um vaso?
- É um imbondeiro Raul. Uma miniatura de um imbondeiro, a árvore da vida. Uma árvore sagrada em muitos lugares de África, que muitos acreditam facilitar a comunicação entre os vivos e os mortos. Ninguém sabe a idade dos imbondeiros. Ao contrário das outras árvores elas crescem ocas e não formam os anéis que nos permitem detectar a sua idade…
- Muito bem! Eu aqui cheio de problemas para resolver e tu a dares aulas de botânica. Estou a perceber… fez-te recordar o grande aventureiro Afonso Soares. Olha, eu não sei como essa porcaria veio aqui parar, mas é bom que te lembres que o grande aventureiro perdeu um pé por causa de uma mina e quase ia perdendo a vida, passou dois anos em coma e quando finalmente acordou resolveu ser um tipo responsável, abriu este hospital comigo e deixou para trás o grande viajante, aventureiro, salvador do mundo. Bolas Afonso! Estamos cheios de dívidas. Preciso da tua ajuda para resolver uma série de coisas e tu nem me ouves!
- Deixa-me sozinho alguns minutos. Só alguns minutos. Eu já vou ter contigo. Prometo – disse Afonso sem tirar os olhos do imbondeiro.
Raul deu meia volta e saiu furioso do consultório batendo com a porta. Entretanto, o telefone começou a tocar.
- Sr. doutor, é a sua esposa. Diz que não tem o telemóvel ligado e ela precisa fala urgentemente consigo – diz a recepcionista do outro lado da linha.
- Diga-lhe que estou numa reunião. Não quero falar com ela agora – disse Afonso indiferente.
- Mas… Sr. doutor, a sua esposa diz que é por causa do seu filho. Está muito aflita! – Insistiu ela mais uma vez.
- Passe a chamada – retorquiu, seco.
- Afonso, meu Deus, não consigo falar contigo e estou desesperada. O Filipe teve uma crise qualquer na escola, perdeu a cabeça, partiu tudo, partiu a sala de aula toda, agrediu colegas e professores e levaram-no para um hospital psiquiátrico porque estava incontrolável. Eu não sei o que fazer. Preciso de ti – disse ela desesperada, a chorar.
- Controla-te que assim não resolves nada. Já vou ter contigo – respondeu enervado.
Há dois dias que não ia a casa. Ia ficando pelo hospital e quando dava conta verificava que já era muito mais que um negócio, um trabalho, tinha-se transformado numa espécie de refúgio também.
Muito longe dali, da cidade, do burburinho das pessoas, da poluição e dos carros, numa pequena praia do Indico, destaca-se na paisagem uma pequena casa caiada rodeada por um jardim de cortar a respiração. Um verdadeiro jardim do Éden, repleto de árvores, flores e todo o tipo de plantas. No alpendre, voltado para o mar, uma mulher dorme tranquilamente embalada por uma cama de rede. É jovem ainda, não terá mais de quarenta anos, mas tem um ar doente e macilento como se a vida estivesse aos poucos a despedir-se dela.
- Isabel, acorde… vamos lá, que está na hora do remédio – disse suavemente uma mulher enquanto lhe tocava no ombro.
- Tive um sonho bonito – respondeu ela a sorrir enquanto se espreguiçava. – Onde estão as crianças? Já voltaram da escola?
- Sim senhora. Eu mesma fui buscá-los depois de arrumar a cozinha e agora a Dila foi com eles na praia – disse-lhe enquanto ajudava Isabel a erguer-se para tomar o medicamento.
- E o meu amor, Dosinda? Na estufa, como é costume? – perguntou a sorrir entre duas colheres de xarope.
- Sim e já veio espreitá-la várias vezes mas voltou. Está a fazer a poda dos bonsais.
- Estás a ver. Está tudo perfeito para a minha partida, preciso só de falar com o Velho Tembe. Pedes-lhe para vir aqui, por favor?
- Claro Isabel. Mas não gosto quando você fala assim. Você ainda vai curar. Tem de lutar pela vida – respondeu a mulher com lágrimas nos olhos.
- Minha querida Dosinda, já falamos sobre isso. Eu tenho um tumor maligno incurável e não quero passar os dias que me restam enfiada num hospital a ser retalhada a cada nova cirurgia só para prolongar um pouco a vida, longe de tudo e todos que amo. Eu tive uma boa vida. Quero ter uma boa morte também. As ervas e xaropes do Velho Tembe ajudam-me a suportar a dor e a ter ânimo. Mas vai lá chamá-lo, por favor, preciso que ele me ajude a fazer só mais uma coisa.
Afonso entrou no consultório ainda de madrugada. Não conseguia dormir e resolvera ir trabalhar. O filho já estava em casa, sob forte medicação e com um diagnóstico preocupante. Uma criança de dez anos, incapaz de controlar a agressividade e a raiva; incapaz de comunicar. Ele cruzou os braços sobre a secretária, pousou a cabeça e começou a chorar infeliz, impotente.
De repente sentiu que algo lhe rodeava os tornozelos, as pernas e que o ia aprisionando. Abriu os olhos e aterrorizado viu na penumbra a sombra de um imbondeiro que se agigantava dentro daquela sala e cujas raízes o prendiam e invadiam. De repente sentiu-se arrancado à cadeira onde estava sentado e em pânico, enquanto se contorcia viu-se ser levantado no ar e atirado para dentro da árvore gigante. Caiu num chão de terra vermelha, sentiu um calor pesado e mal conseguia abrir os olhos com tanta luz. Ouvia um tiroteio intenso que se aproximava cada vez mais, sentia uma agitação brutal à volta dele, o pó a invadir-lhe os pulmões e quando se levantou e olhou em volta encarou um cenário terrível de gente já quase sem vida, esqueléticos, doentes, que corriam para se esconder no mato e fugir ao tiroteio que os perseguia. Afonso ficou parado, paralisado, a olhar. Já tinha estado ali. Já tinha vivido aquilo… tudo aquilo que ele queria esquecer. De repente viu soldados a aproximarem-se, a disparar e algumas pessoas a começar a cair por terra. Viu uma mãe ser atingida na cabeça e lutar por cair de joelhos e depois para a frente para não esmagar o filho que trazia nas costas, preso numa capulana e então viu um homem que saiu como um felino enfurecido do meio do mato e começou a correr contra a corrente, na direcção dos soldados até ficar ao alcance das balas que choviam à sua volta, só para soltar aquele bebé das costas da mãe e salvá-lo. Afonso continuou parado no meio daquele cenário aterrorizador, perplexo, a ver-se a si próprio, há quinze anos atrás, a reviver outra vida. Confuso e perturbado Afonso vê-se então a si próprio a correr como um louco com uma criança nos braços na sua direcção e quando este corre através de si como se ele não estivesse lá, como se não existisse, Afonso sente numa explosão sensorial todas as emoções daquele homem que corre com uma criança nos braços e tenta fechar os olhos e tapar os ouvidos para sair daquele lugar.
Então deixa de ouvir o ruído das balas, as pessoas a correr, os gritos e abre lentamente os olhos. Está deitado sobre a secretária. O dia já nasceu e os primeiros raios de sol invadem o consultório. Afonso coloca as mãos na cabeça e encosta-se para trás na cadeira ainda com o coração acelerado. À sua frente está o pequeno imbondeiro com um cartão encostado ao tronco. Ele olha-o com estranheza. Jurava que o bonsai tinha vindo apenas com um cartão a dizer “obrigada”. E agora ali estava outro, com a mesma caligrafia, onde podia ler-se “coragem”.
- Isabel, você sabe que isto vai precisar de muita energia sua, que você não tem porque a vida está lhe abandonando – disse o Velho Tembe preocupado.
- Preciso fazer isto antes de partir. Devo a um homem tudo aquilo que sou e tudo aquilo que tenho. Tudo aquilo que me permitiu ser feliz e despedir-me da vida sem ressentimentos eu ganhei de um homem com quem passei uma noite, uma única noite na vida e do qual me afastei sem sequer me despedir.
- E não chega teres-lhe enviado um bonsai e um cartão a agradecer? – perguntou o homem que entretanto se aproximou deles.
- Meu amor, estás com ciúmes – disse Isabel a sorrir. – Mas não devias. Eu sinto obrigação de fazer isto pelo tanto que ele me deu. Eu estava perdida quando o conheci, destroçada, no meio de uma guerra que eu já nem conseguia descrever.
- Isabel, partilha com ele essa história, conta tudo para ele entender o que você quer fazer, minha filha e te ajudar também – disse o Velho Tembe, sábio como sempre.
- Eu vou continuar nossas combinações e depois volto para te ver – despediu-se o Velho enquanto se afastava.
- Queres ouvir, então? – perguntou-lhe Isabel enquanto lhe acariciava o rosto.
- Claro, se é importante para ti, se queres voltar a esses lugares da tua memória… - respondeu ele.
- Aqueles foram os piores tempos da guerra em Angola. Estávamos em 93 o Huambo foi cercado pela Unita durante 56 dias e ocupado em Março. Meses depois a cidade foi bombardeada pelas forças governamentais, que a conquistaram. Não é difícil imaginar o que foram esses meses. Toda a loucura da guerra, tudo o que de pior existe nos seres humanos à solta, descontrolado. Eu era uma miúda que queria ser jornalista, mas acho que tinha ido para lá porque queria morrer. Foi uma fase muito amarga para mim, muito dura. Fui para o epicentro da guerra como repórter free lancer. Vi tudo o que não se deve jamais ver. Um dia estava a caminho de um campo de refugiados quando o jipe que seguia à frente do meu foi atingido por uma mina. As viaturas ficaram destruídas e os que sobrevivemos tínhamos que seguir a pé até ao campo. Dois dias depois, esfomeados, feridos, desorientados começamos a ouvir tiros de metralhadora e percebemos que havia uma aldeia à frente que estava a ser atacada. Quando voltou o silêncio aproximamo-nos. Já não se viam soldados. De repente ouvi um choro de criança, olhei para o lado e vi uma mulher, que mais parecia um fantasma de si própria, pegar num bebé e coloca-lo ao peito para lhe dar de mamar. Lembro-me que me apeteceu muito chorar quando vi aquela cena mas depois… depois, saído do nada vejo um homem enlouquecido, que pegou na criança e a arrancou ao seio da mãe e que se atirou àquela mulher, agarrando-lhe os seios, subjugando-a com o peso do seu corpo. Julguei que ia assistir a mais uma de tantas violações da guerra. Olhei para a criança que no chão não parava de chorar, olhei para o soldado morto ao meu lado, retirei-lhe a arma da mão, aproximei-me deles e disparei sobre o homem com raiva. Quando o homem tombou percebi que lhe corria leite pelos cantos da boca. A mulher olhou para mim assustada, pegou na criança e fugiu a correr. Não tinha sido uma tentativa de violação, o homem estava esfomeado e do corpo daquela mulher tomou-lhe apenas o leite. Deixei cair a arma, gritei desesperada, cai de joelhos no chão e então começou a chover e eu fiquei ali, no meio da lama, não sei por quanto tempo, vazia.
Foi então que conheci o Afonso. Era médico no campo de refugiados, que afinal era perto da aldeia atacada e tinham ouvido o ataque e vindo ver se havia sobreviventes que pudessem ajudar. Era contra todas as normas de segurança, mas ele não se importava. Encontrou-me no mesmo local onde cai no meio da lama. Não tinha mais do que uns arranhões no corpo e estava suja e encharcada mas tinha a alma ferida de morte. Quando anoiteceu, depois de ter tratado dos doentes mais graves, veio ver-me. Eu não falava. Aqueceu água, despiu-me, lavou-me, deu-me alguma roupa confortável e limpa, fez-me café, olhou bem dentro dos meus olhos, abraçou-me com ternura, deu-me a mão e arrastou-me para fora da tenda, para fora do campo. Lembro-me que estava uma noite escura e de repente surge na minha frente um imbondeiro enorme a assombrar a noite. O Afonso estendeu uma capulana no chão, sentou-se e disse-me muito sério que já sabia diagnosticar a minha doença. Segundo ele sofria de “Pesada Escuridão”, ou seja andava há tempo de mais a ver cenas de terror, infelicidade, tristeza, violência e precisava apenas de ver outras tantas coisas belas, alegres que me tocassem a alma. Lembro-me de olhar para ele e achar que era louco, que não havia ninguém saudável naquele lugar. Então ele disse-me que tinha a mesma doença que eu em estado crónico e que a única maneira de a tratar era estar atento à humanidade que florescia até nos momentos piores ou então ir até ao imbondeiro, deitar-se a olhar as estrelas. Aquele imbondeiro já tinha vivido tanto, tantas coisas boas e más que lhe dava uma sensação de conforto indescritível. Dava-lhe a certeza de tudo ser passageiro menos aquela árvore. E depois a visão das estrelas na escuridão reforçavam ainda mais aquele conforto… havia luz, algures, mesmo que ali se vivesse na escuridão mais profunda. A determinada altura dei-lhe a mão, acariciei-lhe o rosto e beijei-o. Abraçamo-nos com doçura e fizemos amor como quem quer dar vida ao outro. Quando acordei, nos braços dele ao amanhecer, sabia que não podia ficar ali. Estava frágil, era muito fácil ficar encantada por aquele homem terno. Sabia que tinha de encontrar o meu caminho sozinha. Sabia, a partir daquele dia, que há sempre luz até na noite mais escura e que mesmo no meio da loucura, da maior desumanidade é possível encontrar amor, ternura, beleza. Deixei-o enquanto dormia e chegada ao campo apanhei boleia de uma coluna humanitária da Cruz Vermelha que saia do Huambo.
- E o que queres fazer, Isabel? Eu ajudo-te mas não quero que te prejudiques. Isso Não! – disse-lhe com carinho.
- Meu amor, eu preciso apenas que sejas forte, que entendas o que está acontecer. Não lamentes ter menos tempo do que gostarias comigo. Pensa apenas, na enorme felicidade que foi termos tido a oportunidade de partilhar o mesmo tempo e o mesmo espaço neste universo imenso.
- Bom dia, Sr. doutor, a sua correspondência – disse-lhe a recepcionista e ia já a sair do consultório sem esperar resposta quando Afonso a chamou.
- Joana, leve-me este bonsai daqui para fora. Leve-o para a recepção, para sua casa, deite ao lixo mas não quero voltar a vê-lo – disse-lhe num tom decidido.
- Está a falar desta plantinha na sua secretária? – perguntou ela apontando, a medo.
- Vê aqui mais algum bonsai!? Tire-me isso da frente e desapareça também… já! – gritou.
“Grosso! Mal educado!” pensou ela enquanto pegava na planta e saia quase a correr do consultório.
Era uma planta esquisita, pensou a Joana, mas era pequenina e ali, naquela recepção enorme ia ficar deslocada. Resolveu levá-la para casa. Arranjou um cantinho simpático para a acomodar, ao lado do sofá e instalou-se, sozinha como todas as noites, a ver televisão. Estava quase a dormitar, a ganhar coragem para se levantar e ir para a cama, quando sentiu a luz a falhar e se viu rodeada por escuridão. De repente viu uma sombra enorme a crescer à sua volta e um barulho ensurdecedor de coisas a partir, a cair ao chão. Começou a tremer de medo e agarrou-se à cabeça aos gritos quando o vidro da janela em frente se partiu em mil estilhaços e o vento entrou com violência na sala arrastando-a do sofá. Então viu as raízes de uma árvore enorme que lhe tomara a casa rodearem-lhe a cintura e a atirarem-na pela janela fora. Joana caiu aterrorizada numa superfície confortável e fofa. Olhou em volta e viu que estava numa cama, completamente encolhida, agarrada aos joelhos e que estava a ser abraçada por um homem. Voltou-se suavemente, ainda com receio e viu o carteiro. Viu-o a dormir sereno, tranquilo, com um sorriso nos lábios e sentiu-se bem naquele abraço.
- Afonso está alguém a tocar desenfreadamente à companhia, vais lá tu ver o que se passa? – perguntou-lhe a mulher ensonada.
- A esta hora? Já não se pode dormir sossegado? – resmungou enquanto se levantava e descia as escadas.
- Joana!? Mas o que é que se passa? Você está maluca? Já viu as horas?
- O Sr. doutor desculpe, mas esta planta é para si. Eu acho que ela está embruxada. Aconteceram coisas muito estranhas lá em casa… eu levei-a para casa, sabe?... enfim, coisas muito estranhas e depois… depois eu vi isto encostado à planta – e mostrou-lhe um pequeno bilhete onde podia ler-se numa caligrafia que já lhe era familiar “Afonso” – e juro que não sei de onde isso apareceu. Olhe, Sr. doutor essa planta é para si, está escrito, eu não a quero lá em casa. Tenha uma boa noite – e virou costas deixando Afonso perplexo a olhar o bonsai.
Levou-o para a sala, sentou-se a olhar para o imbondeiro em miniatura e começou a abanar a cabeça de incredulidade. Foi então que num ápice o imbondeiro se agigantou e o devorou novamente. Afonso voltou a cair na terra vermelha e então uma mulher deu-lhe a mão e arrastou-o por um caminho. Ele não conseguia ver-lhe o rosto e olhava em volta na expectativa de estar ver um cenário familiar, de se ver novamente a si próprio quinze anos atrás. Quando deu conta, era noite escura e aquela mulher continuou a arrastá-lo até chegarem a um imbondeiro, onde se deitaram a ver as estrelas.
- O que é que isto significa? Porque é que eu estou aqui? – perguntou confuso.
- Tens uma doença crónica, lembras-te? Pesada Escuridão. E há muito tempo que não tomas a medicação – disse-lhe Isabel a sorrir enquanto o olhava nos olhos.
- Eu lembro-me de vir a este lugar, para descansar, para me afastar do trabalho…
- Tu vinhas a este lugar para voltar a ter esperança, para acreditares que tudo faria algum sentido. Mas estiveste muito tempo em coma, sem ver as estrelas e esqueceste-te de voltar a procurar o teu sentido da vida.
- Agora lembro-me de ti… desapareceste, nunca soube sequer o teu nome – respondeu Afonso.
- Nessa noite salvaste-me mas eu tinha de partir sozinha, como fiz. Foi brusco talvez, mas não conseguiria faze-lo de outra maneira.
- O bonsai… foste tu? – perguntou Afonso curioso.
- Fui. Queria despedir-me de ti e agradecer-te. Sonhei contigo neste lugar numa noite de tempestade e sem o imbondeiro e senti que onde estivesses precisavas de recordar quem eras. Agora estou a ficar muito cansada. Tenho de ir. Fica aqui mais algum tempo, o tempo que precisares a olhar as estrelas e quando voltares a ver o bonsai lembra-te de mim.
Ela beijou-o na testa, levantou-se e desapareceu na noite escura. Afonso deitou-se novamente e sentiu regressar uma serenidade que o tinha abandonado há anos.
O quarto estava iluminado por dezenas de velas e cheio de flores. Parecia um jardim. O Velho Tembe, segurava numa das mãos de Isabel e cantava uma canção que parecia de embalar. O marido segurava-lhe na outra mão e acariciava-lhe os cabelos. À volta da cama as crianças, a Dila e a Dosinda rezavam em silêncio.
- Ela já partiu e conseguiu fazer tudo o que precisava antes de ir embora – disse o Velho Tembe com um sorriso sereno.
Muito longe dali, Afonso acordou no sofá quando o dia amanhecia. Lembrava confuso todas as emoções e acontecimentos dessa noite, sem perceber se tinha sonhado, se tinha sido real, quando olhou para o imbondeiro e viu o bonsai completamente florido e um bilhete encostado ao tronco. “As flores do imbondeiro, como a vida”. Afonso sorriu, sentiu-se iluminado.
20 comentários:
Sem palavras... cada historia, deixa-me estática, sem reacção, entro dentro da narrativa, sinto as palavras na alma... o único pensamento "não deixar de ler!"
Fantástico!... ganhou uma fiel adepta.
Bjs
Afrika, vamos combinar uma coisa: não me trates por você, ok? :) Até porque temos muito em comum, a começar pelo nome.
Fico feliz por teres gostado. Volta sempre!
Deal... ;)
ya, arrepia! há n cenas nas descrições que não deixam parar de ler (por serem paisagens/personagens de lá) e outras cenas que são más/que chocam e que me lembram sempre que a guerra passou mas ficou sempre qualquer coisa cá dentro. tipo: faz parte da minha formação :P gosto muito de ler as tuas historias.
K
Olá K.
Fico feliz. Volta sempre, então.
Minha Amiga.Ontem li este teu conto (e a cores:P). Como sabes, tenho andado ausente de leituras e completamente obsorvido pela música. mas ontem antes de me deitar para dormir decidi ler e escolhi bem, muito bem. As descrições, ambiencias, personagens, o surreal, o fantástico tiraram-me o sono e fiquei desperto até bem tarde. Para a proxima tenho de "te ler" mais cedo :P. Gostei muito .Tocou-me a humanidade, a desgraça mas sobretudo a esperança e positivismo no conto. É a tua Cara, minha querida amiga. Não pares nunca. Estás no caminho certo. Beijos
P.S Esqueci o meu username e password no google/blogger LOL
É bonito perderes o soninho por minha causa :D!Sempre achei interessante ter esse efeito nos homens... LOL.
Mor, beijos... este fds vou ao Vale Encantado... não me escapas!
A realidade e a ficção nem sempre são contradição...então em Africa, tudo é ficção! :-)Bj ou abraço
Já pensaste em escrever um romance?
beijinho
Xupanupipi
Olha que a maior parte das vezes acho que estou a viver num grande filme de terror cá em Portugal e sem esperança de vir a acordar e encarar uma realidade mais gratificante :).
Bem-vindo ao meu reino de histórias.
Marta
Na verdade, já :) o problema é que tenho consciência que preciso aprender muito e treinar mt. Isto não chega ter ideias e criatividade, não senhora, é preciso o resto. O blog é uma espécie de laboratório onde eu vou experimentando coisas diferentes na arte de contar histórias. Ao mesmo tempo que as vou partilhando, coisa que não aconteceria se estivesse à espera de uma oportunidade para publicar :). Vai daí, estou muito feliz por enquanto :D.
Mas obrigada pela força! Beijinhos.
Puxa... esta história quase dá arrepios, de tão intensa que é. :)Qualquer dia fico sem palavras para te elogiar a escrita. :P :) Beijinhos!
É tão intenso que se confunde o real com a ficção. Acho que há algo de real nesta estória. A vida continua! Considero um privilégio poder ler-te! Um dia destes irei comprar o teu livro!
Continua!
Sarinha
Eu assim fico sem jeito, depois dizes-me pessoalmente do que gostaste menos :).
Beijinhos
Lívio
Obrigada. Fico super feliz por gostares mas quem fica sem palavras sou mesmo eu :). Da realidade e da ficção... digamos que é tudo realidade contada em jeito de ficção e no que respeita às histórias da guerra, infelizmente muito mais reais do que gostaria. Eu não as vivi e não teria coragem de as inventar mas estive lá, vi o resultado e ouvi contar muitas que me tiraram o sono.
Obrigada pela força também.
Minha Queria Miss A.
Fiquei emocionada com esta história. Por motivos que não posso partilhar nesta caixinha, mas fiquei. Como sempre, consegues envolver-me numa teia que me impossível fugir. ;)
Beijinhos linda
p.s até o nome da personagem feminina me deu arrepios
:) Já tinha sentido a tua falta por aqui carago! E agora leste 2 histórias de uma acentada... é bonito :). Agora essa coisa de te teres sentido presa numa teia e tal é que não está bem, se calhar é por vires de outro planeta... é que as histórias estão cheias de mensagens subliminares que obrigam os terrestres a voltar vezes sem conta e não é suposto eles darem por isso :D
É que tenhas sentido a minha falta ;)
Eu quando começo a ler as tuas histórias é-me dificil de parar. Li duas porque olha, eram as que estavam na MAIN PAGE ;)
"é que as histórias estão cheias de mensagens subliminares que obrigam os terrestres a voltar vezes sem conta e não é suposto eles darem por isso "
É ESSA A TEIA! lol
Bijinhos Miss A
É BOM que tenhas sentido a minha falta ;)
AQ, quero que saibas que, apesar de não costumar comentar, venho sempre aqui ler as tuas histórias e gosto muito.
Escreves muito bem, e com muita originalidade. Parabéns.
Beijo
Ana
Mas que raio Miss A. ? Foste de férias outra vez? Nada de contos novos...não pode ser!
Beijinhos
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