28/10/07

Conto de Fadas

Está uma noite mágica, ambígua, iluminada. A Lua sempre me fascinou. Mesmo quando a Lua era apenas a Lua e não resplandecia com memórias. Sou uma mulher lunar. Estou sentada na varanda, a beber gin e a fumar um cigarro. Estou sozinha e olho o mar à minha frente, por trás do casario que desce até ao porto, por trás dos mastros de barcos que atravessaram o Atlântico para repousar aqui. E por trás do mar iluminado, quase dourado está a montanha imensa. Não tem luz própria como as estrelas, não reflecte a luz como o mar e portanto nem o luar denuncia a sua presença imponente. Só eu sei que está lá, depois do casario, depois dos mastros dos barcos, depois do mar. Não é uma questão de fé. É que eu sei que a Lua é um astro extremamente selectivo, que nem tudo revela. Abraço as pernas e pouso a cabeça nos joelhos para recordar.
No local onde nasci, muito longe, do outro lado do mundo somos um pouco diferentes. Se alguém nascer durante o dia tem o dom de tudo ver. Pode ver com os olhos e com o coração. Pode ver a alma das pessoas também. Mas se alguém nascer durante a noite, é um ser mais frágil e delicado e tem o dom de se tornar invisível sempre que se sente em perigo, para se proteger. O local onde eu nasci é uma pequena ilha perdida no mar. Não sei porque motivo somos diferentes de todas as outras pessoas. Há lendas e mitos sobre a nossa Criação, é certo, mas nenhuma explicação verdadeiramente satisfatória. Levamos uma vida simples e tranquila. Vivemos da comunhão com o mar. É do mar que retiramos alimentos, energia, medicamentos, histórias. É de mar que fazemos as nossas estradas para encontrar outros povos com quem convivemos e fazemos transacções. É no mar que encontramos satisfação, quando o contemplamos, quando mergulhamos, quando cheiramos a maresia. Raramente saímos da nossa ilha, sobretudo as pessoas lunares que são mais frágeis e delicadas e sofrem mais com as doenças do mundo.
Um dia, acabava de sair da água depois do meu mergulho matinal quando uma nuvem branca poisou na praia à minha frente envolvendo tudo num abraço de neblina que não me permitia ver as minhas próprias mãos. Sentei-me no areal à espera que o sol voltasse. E então vi-o claramente a caminhar na minha direcção. Era um rapazinho espevitado de uns sete anos, com um andar muito seguro de si e um olhar doce e sábio impróprio para a idade dele.
“Quem és tu? Andas perdido?” perguntei eu curiosa.
“Não, acabei de encontrar o que queria. Vim propositadamente à tua procura, Luana” respondeu ele muito sério.
“À minha procura?! Porquê?” continuei, sem perceber nada do que se estava a passar.
“ Sou o teu Guardião. Queres muito sair para o mundo exterior, conhecer o que há para lá da ilha, conhecer as outras pessoas, mas não podes ir sozinha. Eu vou contigo” disse o rapaz com autoridade.
“Mas eu posso proteger-me, fico invisível, nada me poderá fazer mal. Não é um miúdo como tu que me vai ajudar, pelo contrário ainda me vais atrapalhar mais e tenho eu de tomar conta de ti” respondi já cansada daquela conversa.
Foi então que a neblina se tornou mais púrpura e num ápice o rapazinho deu lugar a uma bela jovem de cabelos negros e sorriso delicado.
“Luana, já devias saber que tudo tem muitas formas e muitas faces. Eu posso ser o que eu quiser” disse ela num tom provocador, quando o púrpura deu lugar ao rosa e a jovem se transformou num ancião de cabelos muito brancos e o rosto sulcado por rugas.
“Eu sou um Guardião. Não somos um mito nem seres encantados. Somos tão diferentes de vocês aqui na ilha, como vocês de todas as pessoas do mundo exterior e a nossa missão é proteger-vos, sobretudo a vocês lunares quando querem aventurar-se para lá do mar. É muito fácil esquecer quem são lá fora. A minha missão é zelar para que isso não aconteça” afirmou ele com determinação e ternura na voz.

Quando cheguei ao mundo exterior fiquei fascinada com tudo. Vivia em sobressalto, é certo, e durante os primeiros meses acho que quase ninguém me viu. Tinha medo dos automóveis, dos barulhos, da forma de falar mais brusca das pessoas, dos animais que nunca tinha visto, dos objectos desconhecidos. Tinha medo de tudo mas por outro lado vivia fascinada com as descobertas intermináveis, com os novos mundos, pessoas, formas de estar que desfilavam na minha frente. Pouco a pouco fui-me habituando ao mundo exterior e perdi o medo e deixei de me tornar invisível e estava feliz.
Um dia ao entardecer, enquanto lia tranquilamente num banco em frente ao mar senti que alguém se aproximava e se sentava ao meu lado.
“Que livro maravilhoso é esse que desvia o teu olhar do sol a adormecer?” perguntou-me o homem que acabara de chegar. Sorria para mim e tinha um ar intrigado como se quisesse realmente uma resposta para aquela pergunta.
“Estou à espera da Lua, que está quase a chegar” respondi eu muito séria.
“Olha” disse ele a apontar para o céu, “Já chegou, está ali, vê”.
Fechei o livro e sorri também. Falamos do Sol e da Lua, dos lugares por onde tínhamos passado, de coisas banais, de coisas que nos tinham acontecido, de tudo e de nada. Quando dei conta a Lua já estava alta, majestosa a iluminar o mar e o mundo à nossa volta. Ele tinha acabado de chegar àquele lugar. Vinha para trabalhar ali e quem sabe ficar, ou talvez voltar a partir. Durante muitos dias, muito tempo, continuamos a encontrar-nos. Perdíamos a noção das horas. Sentíamo-nos bem só por estarmos juntos e éramos felizes.
Uma noite aproximei-me dele em silêncio. O luar iluminava-lhe o rosto afável e os olhos ternos. Parei. Olhei novamente, com mais atenção. Parecia-me diferente, algo nele deixara de me ser familiar. Observei atentamente o perfil do rosto, a estrutura óssea equilibrada, a curvatura dos ombros os gestos delicados com que acariciava os braços para se aquecer do frio que a noite trouxera. E de repente o meu coração explodiu, acelerou como se estivesse a falar muito depressa, a dizer muitas coisas ao mesmo tempo. As minhas pernas ficaram paralisadas, incapazes de andar e as ideias, dentro da minha cabeça giravam num turbilhão doentio. Usei de todas as minhas forças para me arrastar até àquele banco e sentar-me ao lado dele. Aproximei-me para o beijar e o meu corpo incendiou-se de sensações desconhecidas. Tentei cumprimenta-lo timidamente. Ele não me respondeu. Continuou a olhar o mar e a tentar em vão aquecer os braços. Toquei-lhe no ombro a tremer e ele não reagiu. Levantei-me, coloquei-me diante dele e ele continuava a olhar para o mar através de mim, como se eu fosse invisível.
Voltei àquele lugar todos os dias. Tentei deixar de temer o amor que crescia dentro de mim. Amaldiçoei a Lua, o mar e a ilha. Entristeci. Voltei a todos os lugares onde nos encontrávamos até ele se conformar com a minha ausência e partir.

Em noites como hoje, de Lua cheia, de magia, não consigo deixar de pensar nele. Estou abraçada às pernas com a cabeça pousada nos joelhos a relembrar os momentos felizes que vivemos juntos.
“Luana anda comigo” disse uma gaivota que pousou na minha varanda.
“Estou a ficar louca… estou a ouvir vozes…” pensei eu confusa, quando a luz da Lua iluminou a minha varanda de tal maneira que me obrigou a fechar os olhos.
“Já nem te lembras de mim!” disse-me um rapazinho espevitado, muito seguro de si, parado à minha frente. “Sou eu, o teu Guardião, anda comigo”, insistiu.
“Mas para onde me queres levar?” perguntei eu curiosa.
“Vamos para casa, Luana, já não és feliz. Já viste o mundo, já aprendeste muito, já tiveste o que querias” respondeu o rapaz enquanto me puxava pela mão.
“Não, Guardião, a única coisa que eu verdadeiramente quero é o amor dele e perdi-o porque tenho medo, porque sou uma cobarde” disse-lhe eu com lágrimas nos olhos e a alma dilacerada.
“Não é verdade! Tu és como aquela montanha por trás do casario, por trás dos mastros dos barcos, por trás do mar. És poderosa e surpreendente mas também frágil e delicada como se estivesses à deriva no mar. E da mesma forma que tu sabes que a montanha está ali, mesmo quando a noite esconde a sua presença, também tu precisas que alguém consiga ver a tua alma para saber onde estás mesmo quando estás invisível”.
“Mas eu quero deixar de ser invisível. Quero que ele me consiga ver. Não quero mais ninguém, não percebes?” gritei-lhe.
“Ninguém pode ser o que não é! Tu és diferente e só vais ser feliz com um igual” insistiu o Guardião enquanto me agarrava com força a mão e me puxava.
Fechei os olhos e vi a ilha, o meu mar tranquilo, as pessoas que me amam e comecei a sentir-me flutuar, a sentir-me mais leve até voltar a sentir terra firme debaixo dos pés. Abri os olhos e vi a minha praia, a minha casa e senti-me bem.

- É um privilégio recebe-lo na nossa ilha – disse Solaris ao homem que ajudava a desembarcar.
- O privilégio é meu. Há muito que queria aprender a vossa tecnologia de gestão de recursos hídricos. Pelo que sei, a ilha é energeticamente auto-suficiente recorrendo exclusivamente ao mar – disse o homem entusiasmado.
- Já sabe que a nossa única condição é manter o mistério sobre a nossa existência. Ninguém pode saber as nossas coordenadas.
- Eu sou um homem de palavra e vou cumprir o prometido – disse o homem com confiança.
- Eu sei, garanto-lhe que sei. Não está em si agir de outra forma – respondeu Solaris a sorrir.
- Mas vamos, depois trazemos as suas coisas, a minha casa é já ali ao fundo e você deve querer descansar um pouco.
Avançaram pelo passeio junto ao mar, bordejado de árvores frondosas e flores coloridas e de repente Solaris viu um rapazinho com ar espevitado sair a correr do meio do casario e parar com ar traquina atrás de um banco de jardim onde uma mulher lia serenamente.
“Um Guardião?! Que estranho… que andará aqui a fazer?” pensou ele intrigado. Entretanto continuou a conversar com o estrangeiro mas de repente este ficou para trás, parado no meio do passeio a olhar fixamente a mulher que lia. Solaris olhou para ele, para o Guardião, que o estrangeiro não via, novamente para ele e sorrindo começou a afastar-se ligeiramente.
O homem aproximou-se silenciosamente e sentou-se junto a Luana. Atrás o Guardião dançava e rodopiava sem parar de rir, enquanto Solaris observava atentamente a cena.
- Que livro maravilhoso é esse que desvia o teu olhar do sol a adormecer? - perguntou o homem que acabara de chegar.
Luana pousa o livro nos joelhos com as mãos trémulas e olha devagar para ele, mas quando os olhares de ambos se cruzam ela desaparece. O homem fica perplexo a olhar o banco vazio sem saber o que pensar. Solaris aproxima-se coloca-lhe a mão no ombro, sentam-se e começam a conversar.
- Meu amigo, há muitas coisas sobre a ilha que você desconhece… - começa ele.
Atrás do banco o rapazinho com ar espevitado dá pulos de felicidade e não pára de dançar.

7 comentários:

African Queen disse...

Meus amigos, quero deixar aqui um abraço especial a todos os que têm vindo visitar o blogue na expectativa de novas histórias. Tenho andado por fora (a trabalhar Alien :), a trabalhar) e não tenho tido oportunidade de escrever todas as histórias que andam à solta na minha cabeça. Apesar de estar de abalada brevemente outra vez vou tentar compensar-vos :).
Espero que gostem desta!

Lívio disse...

Assim ninguém vai comprar o livro!

Boa semana!

Anónimo disse...

Mais uma história encantada. Mais uma vez, comecei a ler e deu-me vontade de parar de respirar (ainda não percebi se para melhor sentir as palavras, se para chegar mais depressa ao fim.Confesso que estive até hoje sem consultar o teu blog mas hoje, o meu Anjo da Guarda sabia que havia história nova e por isso não parou de insistir para eu o consultar. Como vens, até ele adora os teus contos. Obrigada. Beijos.

Marta disse...

Gostei tanto, mas tanto!

Uma história de esperança! De facto não precisamos procurar, porque o verdadeiro amor encontra-nos sempre, mesmo que não saiba as cordenadas!

beijinho

African Queen disse...

Lívio

Ai (suspiro) se neste país se pudesse viver da venda de livros (sorrio). Se ninguem comprar livro mas muitos como tu lerem as histórias eu já me dou por muito feliz :)
Abraço


Anónimo (a)
Para a próxima seria possível deixar uma assinaturazita qualquer? Nem que seja um nome inventado... :)
Pois, os Anjos da Guarda são grandes admiradores dos meus contos... eu bem me parecia que de vez em quando anda gente a voar cá em casa.
Abraço


Marta

Que lindo, sabes que essa tua ideia não me passou pela cabeça ao escrever o conto?! A sério, pensei em muitas outras coisas mas nunca nessa perspectiva, que faz todo o sentido. Basicamente sou uma romântica, melosa do caraças apesar do disfarce de super mulher justinho e catita e essa minha faceta secreta vem ao de cima quando menos se espera :).
Abraço e fica bem!

Anónimo disse...

Que história maravilhosa!



Obrigado

Alien David Sousa disse...

Miss A.
FASCINANTE! ADOREI! Não tenho palavras.
Beijinhos
p.s Valeu a espera ;)