13/08/07

Mar de Morte II

(Continuação) Este conto começa em Mar de Morte I, no post anterior.

O barco tombado permitia-nos usufruir de um pouco de sombra. Voltei a arrastar-me para dentro dele em busca de protecção e aí fiquei a tentar ordenar as ideias. Via o José, a irlandesa e os outros homens a discutir violentamente mas nem ouvia o que diziam tal era o barulho dos meus pensamentos. Nasci na Ilha, numa casinha cor-de-rosa com um alpendre aberto para o mar. Todas as memórias da minha infância estão presas a esse cenário. O meu pai era mergulhador e caçador de tesouros. Há centenas de navios naufragados nos recifes costeiros, sobretudo dos séculos XV a XVII quando o comércio com a Índia florescia e estes transportavam ouro, prata, porcelanas Ming e jóias. Mesmo durante a guerra ele mergulhava e comercializava os achados com coleccionadores de todo o mundo. Era uma actividade ilegal, corrupta, mas acho que apesar de tudo o meu pai gostava mesmo do que fazia. Gostava tanto que acabou por centrar toda a sua vida no trabalho e a família foi descendo níveis de prioridade na sua lista de preocupações. Um dia a minha mãe pôs um ponto final naquela situação e foi embora. Levou-me muito jovem para a Europa e nunca mais voltei à Ilha.
Um dia o José apareceu. Conhecia-o desde que me lembro pois fora sempre o ajudante preferido do meu pai. Disse-me que ele tinha morrido e que sempre lhe falara num tesouro que nunca chegou a vender e que escondera na sua casa da Ilha. O José queria encontra-lo e precisava da minha ajuda. Por qualquer motivo o meu pai associava sempre o meu nome ao tal tesouro. Eu disse-lhe que não voltaria à Ilha, que não me interessava tesouro algum, que devia ter sido um delírio do meu pai. Ele lançou-me um olhar gelado e com incrível violência deixou cair a mão direita na minha face e atirou-me ao chão. Ainda atordoada com tudo aquilo, com os lábios a sangrar e o rosto a arder tentei levantar-me quando José me agarrou pelo cabelo, me ergueu no ar e murmurou ao meu ouvido, cheio de raiva, que se não o ajudasse a encontrar o tesouro me matava. Fiquei refém dele desde esse dia e sem um único momento de paz, de solidão. O José era uma presença constante, seguia-me por todo o lado, não tirava os olhos de mim… e eu fui perdendo vontade própria e coragem.
E agora estávamos ali, a caminho da Ilha, no meio do mar. Estava perdida nestes pensamentos quando o Mar se aproximou e se sentou ao meu lado.

- Moça bonita está triste – disse-me ele com um ar doce.
- Um bocadinho Mar, mas já passa. Estou com medo desta viagem que nunca mais acaba.
- A moça não precisa ter medo. O mar do canal só mata quem não tem chão à espera – respondeu ele enigmático com os olhos fixos em mim.
- Estou a ver que sabes muitas coisas – disse-lhe eu a sorrir enquanto lhe afagava a cabeleira farta.
- Confia em mim moça e não sai deste barco – continuou Mar com a sua vozinha calma, quando de repente José chega.
- Vamos! Pega nas tuas coisas e vamos embora. A Ilha não pode estar a mais de duas ou três horas de distância a pé e não ficamos aqui nem mais um minuto com este bando de atrasados mentais – gritou ele enquanto me agarrava pelo braço e me levantava.
Entretanto a nossa companheira de viagem irlandesa aproximou-se para pegar nas coisas dela.
- Meu Deus, não aguento mais esta gente ignorante cheia de mitos e fantasmas… vamos embora que eu não atravessei o continente inteiro para morrer à sede aqui – disse ela exaltada com o seu sotaque irritante.
- Eu não saio daqui – disse eu de repente, quase num sussurro, enquanto olhava para o Mar.
- Mas você não percebe o risco que está a correr? Estamos no meio de um mangal enorme que rodeia as ilhas, onde as marés são intensas e a água chega a desaparecer. Se esperarmos que volte a haver água para navegar ficamos aqui horas ao sol e se não voltar vento continuamos aqui parados e voltamos a encalhar na próxima maré. Se formos a pé chegamos à Ilha antes de o mar subir – explicou quase cientificamente a irlandesa.
- Tu estás parva! Pega nas coisas já e vamos embora daqui! – gritou o José irado enquanto me agarrava novamente no braço e me sacudia como se eu fosse uma boneca.
- Eu não vou! – repeti eu, agora num tom decidido. – Estou cansada, sem forças e fico aqui à espera da maré. Encontramo-nos depois na Ilha.
O José puxou da arma que trazia sempre escondida nas calças, apontou-a à minha cabeça e obrigou-me a ir com ele. A irlandesa ficou paralisada com a cena mas rapidamente recuperou e veio atrás de nós. Quando nos afastávamos do barco o Mar veio a correr juntar-se a nós. Disse a José que sem ele nunca mais encontrariam o caminho para a Ilha no meio do mar. Sem tirar os olhos de mim e com a arma sempre apontada José ignorou-o e ele veio connosco. Eu, sem saber porquê senti-me mais tranquila, mais protegida. Algum tempo depois estávamos todos desesperados com o calor, a sede, a fome e mal nos conseguíamos manter em pé. Todos menos o Mar que seguia tranquilamente como se se tratasse de um passeio. A dada altura eu tropecei e caí. Sentia uma fraqueza letal no corpo, tudo girava à minha volta e sentia-me flutuar, leve, lentamente a deixar de sentir os efeitos daquela viagem brutal. À distância vejo a irlandesa a discutir com o José e ele a apontar-lhe a arma e a disparar directamente no peito. Ela tinha-se tornado num empecilho e ele eliminou-a. Depois vejo o Mar a aproximar-se lentamente do José, a parar à frente dele e a abrir os braços. O José lança-lhe um olhar assassino e de repente quando vai a levantar o braço para atirar no Mar começa a tremer, a contorcer-se violentamente com os olhos muito abertos cheios de desespero. A arma cai e ele leva as mãos ao pescoço numa tentativa desesperada para respirar até que acaba por cair asfixiado. Entretanto começa a sair um fio de água da boca e do nariz do cadáver que rapidamente se torna num pequeno lago que o rodeia e começa a cobrir.

- Moça, acorda. Bebe um pouco de água – disse-me ternamente o Mar estendendo-me uma caneca.
- Mas… estamos no barco?... o que aconteceu? – perguntei confusa, tentando ordenar as ideias.
- O seu José matou a senhora estrangeira… se enervaram, discutiram e ele disparou nela – disse o Mar.
- E ele, o que lhe aconteceu a ele – perguntei eu confusa, com as lágrimas nos olhos, olhando em volta a tentar ver onde ele estava.
- Ele morreu afogado que o mar não gosta de sangue a manchar suas águas. O mar matou ele e depois de tratar dos seus assuntos voltou para nos levar. Não chora mais que daqui a pouco a moça vai chegar a casa – disse o Mar para me confortar.
Os outros homens e Mestre Josenias estavam atarefados manobrando o barco. A maré trouxe com ela o vento e o barco galgou as ondas até vermos a Ilha no horizonte. O Sol começava a desaparecer e espelhava no mar um tumulto de laranjas que pareciam labaredas. Ao longe, no lado direito da Ilha vi de repente um ponto cor-de-rosa no meio do verde luxuriante da vegetação. Senti como se estivesse a atravessar um mar de chamas, o próprio Inferno para chegar àquele lugar.


- Olha moça, a Ilha está a ficar famosa – disse o Mar entrando de rompante no alpendre, com uma revista aberta nas mãos.
- Ei! Calma – disse-lhe eu a sorrir lançando um olhar de cumplicidade. – Já estamos habituados. Desde que descobrimos aqueles documentos antigos do meu pai que a Ilha é famosa em todo o mundo.
- Nada! Olha aqui foto da Pousada Cor-de-Rosa… e eu, olha eu ao lado do Mestre no barco cheio de turistas – disse Mar todo entusiasmado com esta fama súbita.
E ali ficamos o resto da tarde, embalados pelo som das ondas no alpendre, em frente ao mar, a ler a reportagem sobre a pousada e as maravilhas da Ilha como se nunca tivesse havido vida para além do canal.

6 comentários:

Europe Calling disse...

Obrigada pelo seu comentário. COntinue ligada no nosso blog www.callingeurope.blogspot.com que em breve iremos postar mais informações sobre Veneza.
Europe Calling

BOLG disse...

Boa, encontrei o teu blog (sabes, dito assim parece melhor, mas a realidade é que vi o teu comentário...).
Ainda não li as tuas histórias. confesso, mas vou tentar ler (eu sou assim, mais vale tarde que nunca).
Se não te importares adiciono-te aos blogs de amigos...

PS. escolhi comentar neste post porque achei que ficava bem de pois do chamamento da europa e com uma camiseta personalizada...

African Queen disse...

:)Bem-vindo!
E claro que podes adicionar o meu blog aos amigos, eu é que agradeço!
E foi um gesto bonito colocares o teu comentario aqui... ele há cada uma :D! Fiquei sensibilizada.
Abraço e volta sempre

Alien David Sousa disse...

A.Queen, para variar: GOSTEI!
E sabes que mais? É interessante observar o papel que as crianças têm nos teus contos :)

Beijinhos e volta rápido

African Queen disse...

Ummmm... aí está uma coisa em que nunca tinha pensado... mt perspicaz minha cara :). Pelos vistos há uma criança dentro de mim que teima em saltar cá para fora... já me tinham dito isso... mas não tinha reparado que tb saltava para os meus contos :)

Anónimo disse...

Aprendi muito