Há muitos dias que não acontecia uma gloriosa manhã de sol como aquela. Sol de Inverno, intenso, teimoso, a romper o ar gélido e a iluminar o mar furioso que fustigava as rochas. Helena passeava na praia, com os braços cruzados sobre o poncho quente de lã e os pés descalços na areia molhada e fria. Desde pequena que adorava andar descalça, numa espécie de ritual íntimo com a terra-mãe, e percorria o areal com pequenos passos seguros enterrando os pés um atrás do outro e olhando para trás, para ver as pegadas desaparecerem no momento seguinte, efémeras, como se ela própria desaparecesse e se renovasse a cada passo.
Já tinha perdido a conta dos dias passados na casa da praia. Helena tinha-se refugiado ali, como sempre, para escrever. Precisava de estar sozinha, de não contabilizar os dias e horas que passavam para se sentir livre e dar vida às ideias que depois transformava em histórias, que entregava à sua editora, que depois as transformava em mais um livro. Às vezes passava meses sozinha na casa da praia e invariavelmente, quando terminava, partia sem regresso marcado para qualquer lado do mundo, indiferente ao maior ou menor sucesso do seu trabalho, alheia ao frenesim promocional, que enlouquecia a editora e que involuntariamente criava à sua volta uma aura de mistério. Helena S. era uma romancista de sucesso, um fenómeno literário, mas ninguém conhecia aquela mulher pequenina, de cabelos negros em desalinho, sorriso tímido e olhar penetrante.
Durante os últimos dias, talvez semanas, não tinha sido capaz de escrever uma única linha. Passava horas a fio à frente do computador, a ouvir música e a escrever frases que apagava mal colocava o ponto final. Naquela manhã decidiu não escrever; decidiu aproveitar o sol raro de Inverno e passear na praia. Ria-se sozinha, olhando para os passos que desenhava na areia a desaparecer atrás de si. Rodopiava, corria, arrastava os pés, saltava, numa espécie de escrita efémera que o mar teimava em apagar. Deixou-se levar por esse impulso, que a divertia, e caminhou mais do que alguma vez tinha caminhado. A determinada altura, ofegante e cansada decidiu sentar-se a contemplar o mar. Recuou até ao cimo das dunas, que eram altíssimas naquela zona e parou. Respirou fundo e sentiu o ar frio invadir-lhe o peito, fechou os olhos e ouviu a cadência silenciosa do mar. Quando se sentiu revigorada e pronta para voltar à casa da praia, ergueu-se e olhou em volta. Nunca tinha estado antes naquele lugar e então reparou num pequeno caminho de areia que partia dali e penetrava no canavial imenso que se estendia até um pinhal bem mais atrás. Resolveu segui-lo e ver até onde a levava.
Deparou-se, algum tempo depois, com uma imponente mansão abandonada, em ruínas. Na sua época, tinha sido sem dúvida uma casa maravilhosa. Era fácil imaginar como tinha sido a fachada arte nova, com frisos belíssimos a emoldurar as janelas, com varandas ondulantes e esculpidas com elementos do mar e da terra, com vitrais coloridos que brincavam com a luz. Nem a invasão de plantas que se apoderou da casa, nem a degradação dos anos que apagou frescos, destruiu vitrais, varandas, frisos e esculturas, nem o ferrugem que cobriu os maravilhosos contornos do ferro forjado eram capazes de apagar a imponência e o esplendor daquela casa. Helena passou horas a observar cada detalhe, como se lesse em cada centímetro de parede uma história perdida no tempo. Era extraordinária e havia um detalhe, acima de todos, que a intrigava, que não combinava com a arquitectura cuidadosamente planeada da casa. Na fachada principal, por cima da belíssima porta de entrada, em madeira maciça, gasta, recortada sem um único ângulo recto, encontrava-se um relógio enorme, incorporado num friso que fazia lembrar uma estrela-do-mar. As horas esculpidas em numeração romana tinham-se esvanecido sob o efeito da erosão, mas os ponteiros, ainda que completamente cobertos de ferrugem, estavam lá, intactos a marcar a última hora: 11h59.
Subitamente, Helena foi arrancada ao estado de encantamento que a casa lhe provocara por um trovão ensurdecedor, seguido de chuva intensa que em segundos a deixou completamente encharcada. Tinha perdido a noção do tempo. Estava a escurecer, estava frio e abatera-se sobre ela uma tempestade violenta. Num impulso, Helena deu um encontrão com o ombro na porta da casa e esta abriu-se deixando ver o chão de mármore, os frescos apagados das paredes, a decoração em estuque que restava no tecto, os candeeiros monumentais e a escadaria; uma escadaria como ela nunca tinha visto, que a partir de uma base comum rodopiada e se separava criando três acessos a diferentes partes da casa. Helena fechou a porta atrás de si, deixou de ouvir a trovoada, de se sentir intimidada pelos relâmpagos e olhou em volta, maravilhada. A escadaria parecia o coração da casa a pulsar de vida, os frescos ganharam cores intensas e pareciam iluminar o interior do salão, as figuras esculpidas a estuque pareciam querer sair do tecto e dançar à sua volta, os candeeiros pintados com cores fortes, maravilhosos, pareciam iluminar o mundo. Helena começou a andar lentamente, rodopiando sobre si própria para não perder um único pormenor. Foi então que começou a ouvir a música. Primeiro ao longe, muito longe, um piano soltava notas delicadas de uma melodia encantadora. Depois a música foi-se aproximando, começaram a ouvir-se violinos também, em perfeita sintonia. E depois vozes, muitas vozes. Vozes de homens e mulheres, risos e gargalhadas, sons de festa e alegria. E então, Helena ouviu claramente um burburinho de crianças que brincavam e riam e corriam pela casa. Ela olhou em volta e não viu ninguém, mas ouvia as crianças cada vez mais intensamente. O som vinha do andar de cima e não só as ouvia a brincar como podia sentir os seus passos enquanto corriam alegremente.
Colocou a mão no corrimão de madeira e começou a subir tentando encontrar o caminho naquele labirinto de escadas que se entrelaçavam e separavam como se tivessem vida própria. Foi então que ouviu claramente “Anda! Quero mostrar-te o meu tesouro!” seguido de gargalhadas e burburinho de riso de crianças. Tentou seguir aquela voz e quando chegou ao cimo das escadas e olhou para o corredor à sua frente viu, num ápice, um vulto de criança dobrar a esquina a correr. Apressou-se para o tentar apanhar, continuou a ouvir o desafio “Anda!” e o riso alegre de crianças. Entrou num labirinto de salas e salões que se abriam uns para os outros e para novos corredores e escadas. Voltou a ver o vulto dobrar outra esquina, continuou a segui-lo e deu por si numa sala forrada a veludo azul celeste, decorada com esculturas que saíam das paredes como se tivessem um dia tido vida própria e tivessem sido aprisionadas por um feitiço qualquer. Eram figuras de homens, mulheres e crianças, de várias idades, em várias situações. Helena reparou atentamente numa delas; um velho, muito velho, no fim da vida, com o olhar mais triste do mundo, que segurava nos braços, um enorme relógio. E depois viu a porta entreaberta. Ela era capaz de jurar que quando entrara naquela sala não havia mais nenhuma porta, mas agora lá estava ela, mesmo à sua frente, paralela à porta por onde tinha entrado e lá dentro ouvia-se agora, claramente, o burburinho alegre das crianças. Avançou curiosa, empurrou lentamente a porta e entrou. Olhou em volta perplexa e encantada. Nas paredes, no tecto, em cima dos móveis, por todo o lado podiam ver-se centenas de relógios, todos parados, todos com uma hora diferente. Quando olhou para a delicada mesinha de mármore mesmo ao seu lado, Helena não pôde deixar de reparar num belíssimo relógio de bolso antigo, em ouro, uma verdadeira obra de arte que estava pousado no meio de vários outros relógios. Pegou nele com cuidado. Marcava 6h23. No mesmo instante, sentiu a porta fechar-se violentamente nas suas costas e sobressaltada reparou que todos os relógios tinham começado a trabalhar, em sentido contrário, como se estivessem a recuar no tempo.
(continua brevemente)
08/01/08
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6 comentários:
Ok, preguei a ler! Estou à espera da continuação. Esse velho ainda vai dar que falar, quase de certeza! :)
Aguardo então a continuação...
beijos
Ahhhhhh
Ola, feliz ano novo!
Adoro as tuas historias, se bem que, quando começo a ler-las fico com um arrepio e com a sensação de medo que se apodera de mim... talvez pela maneira misteriosa com que as escreves. E' como se estivesse a espera que algo maléfico e assustador saia do próximo canto ou corredor ou se levante da própria terra!
fico a espera da continuacao!
Beijo
htsousa
És capaz de ter razão... mas por enquanto o velho ainda tá lá sossegadito no canto dele :) e eu ainda não faço a mínima ideia do papel que ele vai ter na história. Isto é giro!! :)
Gaja Boa
Tens de ter paciência e continuar a aguardar por mais... o parto tá difícil :)
Afrika
É por causa de comentários assim que eu gosto desta história do blog. É giro ver a forma como os outros sentem o que escrevo. Por exemplo eu não tinha noção que algumas histórias metiam medo dessa forma... tenho tendência a valorizar mais outros aspectos delas. Nesta, por exemplo, deu-me imenso gozo "construir" a casa, dar-lhe forma e descreve-la, fazer com que a vissem como eu na minha imaginação... mas é inegável o meu gosto pelo fantástico e pela poesia e pelos sonhos e pelas pessoas... :)
Olha, vais ter de voltar porque a história tá com vida própria e a crescer de uma maneira incontrolável. Bem queria tê-la acabado hoje, mas não, vai haver mais... :)
Ah já cá está a continuação! :)
Como sempre MISS A, quando começo a ler as tuas histórias não consigo parar. Deixa-me mas é voltar para a história...estou intrigada ;)
beijinhos
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