O Zé do Muro e o Rafa formavam uma dupla famosa em toda a Ribeira. Nunca aquelas gentes viram um sem logo a seguir aparecer o outro e estavam habituadas à sua presença sincronizada.
O Rafa era um cão rafeiro baptizado pelo povo sem recurso a muita imaginação. Para o universo canino poder-se-ia dizer que tinha uma certa idade pois contava já com uns bons dez anos integralmente vividos entre Miragaia, a Sé e a Ribeira do Porto. O Zé do Muro era um pouco mais novo. Nasceu na rua de Cima do Muro e é filho da Ribeira inteira, apesar de oficialmente estar entregue aos cuidados de uma tia materna, desde que os pais se encontram presos. Normalmente eram detidos intercaladamente, mas da última vez tinham ido juntos para a cadeia e ficariam por lá algum tempo.
Sempre achei extraordinária a forma como na Ribeira se classifica as pessoas através do nome, como se fosse um código local, associando a toponímia, a origem familiar ou qualquer atributo físico ao nome próprio. Ninguém é só José, ou António, ou Maria, ou Alice. Não! Na Ribeira tem de se ser sempre mais qualquer coisa para que se saiba bem de quem se está a falar. Tem de ser o Tono Mouco, o Manel das Canas, a Mariazinha de Belmonte… e por aí adiante e portanto, o Zé era o Zé do Muro, não fosse a gente confundi-lo com outro Zé qualquer. Também sempre achei extraordinária a periodicidade e simplicidade com que muitos dos habitantes locais frequentam estabelecimentos prisionais, famílias inteiras que têm Custóias como uma segunda casa, miúdos que mal podem fugir ao sistema de ensino se entregam ao negócio do tráfego de droga para ajudar a família e que rapidamente entram na rotina de entrar e sair da prisão. A Ribeira é um verdadeiro microcosmos e foi aí que conheci o Zé do Muro.
- Rafa, despacha-te que estou a ficar com fome e o Zé dos Ovos está à nossa espera com o almoço – gritou o Zé do Muro, sentado no cais, para o amigo que ao fundo da rampa perseguia furiosamente uma ratazana mais descarada.
- Cheiras mal! Assim não nos deixam nem chegar perto do restaurante. Cheiras a podre como o lodo do rio. Vai tomar banho já! E não venhas sacudir-te para a minha beira, sacode-te longe.
O Rafa ainda tentou argumentar que a água na maré baixa também cheirava mal, soltando dois latidos, mas vendo que o companheiro continuava com aquela mania da limpeza lá foi obediente a banhos e limpou-se o melhor que pôde para irem ao restaurante. Mal os viu, o Zé dos Ovos foi buscar um embrulho tosco feito com o papel de uma toalha de mesa, cheio de ossos e restos para o Rafa e um prato de comida para o Zé do Muro.
- Vocês vêm sempre na hora certa. Devem ter um relógio na barriga desacertado com o dos turistas. Quando eles acabam e a gente começa a arrumar vocês aparecem logo – disse o homem bem humorado enquanto lhes entregava a comida.
- É que quando deixa de cheirar a comida a gente fica com medo que ela acabe e vimos logo a correr – respondeu o Zé do Muro a brincar enquanto se instalavam mais à frente na sombra das arcadas e afastados da curiosidade dos turistas.
Depois de comer o Rafa não resistia a dormir a sesta esticado ao sol e o Zé do Muro, ainda que por uma questão de solidariedade, encostava-se confortavelmente e fechava os olhos. Normalmente não conseguia propriamente dormir mas gostava de se entreter a tentar adivinhar o que se passava à volta dele. Sentia o cheiro forte das azeitonas do Quim Manco e da fruta da Salete do Quintas e ouvia as conversas apaixonadas que os dois amantes, ambos casados com outras pessoas, sussurravam um ao outro; sentia o cheiro doce da lã e da palha que enchiam as lojas de artesanato, transformadas em camisolas quentes que insistiam em vender em Agosto, e em cestaria que os turistas adoravam tocar e remexer. E assim conforme era mais intenso o cheiro da fruta ou da palha, das azeitonas ou da lã ele sabia qual era a loja que tinha mais turistas, isto tudo para além do cheiro a cerveja que inundava sempre a Ribeira. E adorava prever o tempo através do cheiro do rio. Tinha desenvolvido um gosto especial pela meteorologia e um sistema quase infalível de previsão. Conforme o rio se elevava no ar trazendo com ele o aroma da humidade e o toque da neblina, ou ficava parado a espelhar a ponte sem levantar uma brisa, ou se abria como um esgoto para lhe saírem os maus cheiros das entranhas, o Zé do Muro era capaz de prever se ia fazer sol ou chover, se ia haver vento ou calor e divertia-se a informar as pessoas das suas previsões meteorológicas.
De vez em quando a tia, a meio das suas lides, lá vinha à porta de casa gritar por ele e o nome do Zé do Muro ecoava por toda a Ribeira. Nessas alturas, ele pegava no velho Rafa pela coleira e corria escadas acima até ao muro para não fazer esperar muito a tia, que era conhecida por Tina Maluca. Ela tinha sempre muitos recados para ele fazer: comprar açúcar na mercearia, levantar uma encomenda na Gina dos Guindais, levar um embrulho à associação recreativa, comprar ovos, chamar a Zita Bela porque tinha um recado para lhe dar… enfim, a tia ainda não descobrira o maravilhoso mundo dos telemóveis e fazia do Zé do Muro um verdadeiro pombo correio.
Nesse dia, a meio da sesta lá se ouve por toda a Ribeira a voz da tia e os dois amigos interrompem o descanso e lançam-se muro acima para se apresentarem ao serviço.
- Zé, meu estupor! Tás mouco?! Tou quase sem voz de tanto gritar por ti… Já sabes que não te quero longe de casa! Preciso que leves isto à Rosa da Touca nos Guindais e depois aproveita e diz ao Zé Noite que preciso falar com ele – disse-lhe a tia furiosa, enquanto lhe entregava um pequeno embrulho.
O Zé do Muro, como um verdadeiro profissional dos recados, volta a agarrar no Rafa e correm até às escadas dos Guindais que sobem a contar os degraus. Já sabem de cor onde é a casa da Rosa da Touca, mas o Zé do Muro gosta de contar degrau a degrau o caminho.
No regresso com uma saca de plástico na mão para entregar à tia, pressente um alvoroço estranho em cima do muro e resolve fazer um desvio por baixo, pelos arcos. Ao passar pela São Só, ela oferece-lhe um gelado de máquina e ele aproveita para se sentar um pouco no cais até lhe sossegar um pouco o coração e perceber o que se passa. Foi então que outro cão se aproximou dele a correr, de tal forma que parecia enlouquecido e que o Rafa se levantou e se atirou a ele para defender o amigo. Os dois animais iniciaram uma luta desenfreada e sangrenta e o Zé do Muro levantou-se assustado, aos gritos e tentou proteger o amigo, acabando por ser atirado ao chão. É nesse momento que eu chego, a correr também, ofegante, chamo o Golias e tento separar os dois cães. Mal o Zé do Muro consegue segurar o Rafa, o Golias desvia a atenção dele e concentra-se no saco de plástico caído no chão junto a eles, começando a ladrar desalmadamente.
Eu pego no saco, abro-o e aceno para os meus colegas da polícia que em Cima do Muro revistavam a casa e prendiam a tia do Zé do Muro. O saco, cheio de doses individuais de cocaína era a prova de que precisávamos para deter a mulher, mas de repente olhei para o miúdo assustado à minha frente, com as lágrimas a cair pela cara abaixo, muito agarrado à coleira do cão com uma mão e com a outra a fazer-lhe festas de conforto no lombo e fiquei sem saber o que lhe fazer.
- Você é da polícia? – pergunta-me o Zé do Muro, muito sério.
E eu fico perplexo, pois só então percebi que o miúdo era cego e que não percebia o que se estava a passar.
Sentei-me com ele no banco, junto ao rio.
- Eu sou polícia. Chamo-me José e tu?
- Eu também me chamo José, mas não sou um José qualquer, sou o Zé do Muro.